O solipsismo de Chico Xavier e o Brasil como um quintal da Pedro Leopoldo de 1932

IGREJA DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO, EM PEDRO LEOPOLDO, EM FOTO TIRADA EM 1957 PARA A ENCICLOPÉDIA DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS DO IBGE.

Sabiamente, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ao enumerar o município de Pedro Leopoldo, em Minas Gerais, não mencionou em momento algum o nome de Francisco Cândido Xavier, seu cidadão mais famoso, contrariando a imagem deslumbrada que o "médium", conhecido como Chico Xavier, goza postumamente, convertido numa "fada-madrinha" para adultos e idosos.

"Como é que uma instituição séria como o IBGE não reconhece uma figura iluminada e mundialmente (sic) reconhecida como o grande Chico Xavier, que viveu para ajudar o próximo?", dispararia algum chiquista desavisado, marcado pela visão anacrônica de acreditar que a imagem "bondosa" do "médium" sempre existiu e não foi, como os fatos demonstram, uma construção ideológica da ditadura militar para criar um ídolo religioso que servisse de cortina de fumaça para a crise do período ditatorial.

Pedro Leopoldo nem parece uma cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Terra natal de Chico Xavier, a cidade foi um distrito de Santa Luzia e é vizinha desta e de Ribeirão das Neves, entre as cidades destacadas da Grande BH. A cidade de Pedro Leopoldo tem feições rurais, algo como a cidade de Japeri, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. 

O município onde nasceu o suposto "maior médium do Brasil" mais parece uma cidade perdida no Triângulo Mineiro onde ele viveu as últimas décadas de vida. E, como no interior de Minas Gerais, ainda mais entre os anos de 1910 e 1932, entre o nascimento e a ascensão do "médium", a população ainda vivia nos padrões culturais e religiosos do século XIX e, se em 1932 a República Velha havia completado dois anos de seu fim, os interioranos mineiros ainda estavam saudosos do Segundo Império, que havia sido extinto em 1889.

Chico Xavier personificou a figura conservadora, cafona, atrasada, ruralista e moralista em moldes medievais evidentes. Apesar disso, seu mito criou uma fachada que tentava ser o oposto de tudo isso, a ponto do "médium" ser considerado, por muitos seguidores, o "senhor do futuro", tendo sido postumamente beneficiado, nos últimos anos, pela pretensa imagem de "profeta", mesmo ao arrepio dos ensinamentos originais do Espiritismo na França.

Para quem não sabe, Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns, reprovava o ato de prever acontecimentos futuros com datas precisas, e hoje, 20 de julho, faz dois anos do fiasco da "data-limite", a pretensa profetização de Xavier que não conseguiu confirmar as supostas previsões e cujo fracasso fez os "espíritas", de forma constrangedora e vergonhosamente oportunista, marcarem novas datas para a tal "data-limite", em reinterpretações confusas e tendenciosas, apostando no ano de 2057, pegando carona nos 200 anos de publicação de O Livro dos Espíritos.

O ultraconservadorismo explícito de Chico Xavier está presente nas ideias e nos depoimentos dele, foi aplicada em sua doutrina religiosa e mostram caraterísticas evidentes de que ele era adepto fervoroso da Teologia do Sofrimento. São ideias baseadas na aceitação submissa da desgraça humana, na defesa dos sacrifícios opressivos dos deserdados da sorte, e que no âmbito trabalhista eram voltados ao trabalho servil e à obediência servil aos patrões, mesmo sendo eles abusivos, violentos e impiedosos.

A confusão mental de muitos brasileiros, que não sabem direito quais os valores são"modernos" ou "antiquados", propicia a existência tanto de bolsonaristas convictos (não esqueçamos que Chico Xavier foi uma espécie de "Jair Bolsonaro do bem", em seu tempo, e o "médium", se estivesse vivo, seria muito provavelmente um bolsonarista) quanto de esquerdistas identitários perdidos entre a mistificação religiosa e o hedonismo desenfreado, além de "isentões" de vários tipos.

E é dentro dessa esfera psicológica que Chico Xavier continua recebendo a adoração servil de seus seguidores e isso faz com que valores sócio-culturais se percam entre uma visão de mundo retrógrada e provinciana e uma obsessão em parecer moderno aos olhos dos outros. Isso permite que o Brasil esteja numa situação cultural degradável, que faz as pessoas ficarem impotentes em derrubar Jair Bolsonaro, que na prática parece atuar e viver como um protegido de Chico Xavier.

Solipsista, Chico Xavier era afeito a julgamentos de valor e queixumes que desaprovava dos outros. Devemos lembrar que o pior resmungão não é aquele que reclama de sucessivos problemas e impasses da vida, mas aquele que reclama sem motivo, porque prefere ver os outros felizes e satisfeitos à força. 

O pior resmungão é aquele que reclama dos sofredores de verdade, porque não suporta ver sua revolta e indignação. O pior queixoso é aquele que, vivendo de significativo conforto - como foi Chico Xavier, sustentado da melhor maneira pela "Federação Espírita Brasileira", à maneira de um membro da família real britânica - , não suporta ver os deserdados da sorte chorando e lamentando de verdade, e reprova suas queixas.

Daí que Chico Xavier queria que fosse ele uma "unanimidade", que todos concordassem com ele. Suas opiniões pessoais retrógradas, em atitude reprovada pelos ensinamentos da Codificação, eram enfeitadas por nomes de mortos ilustres para dar a impressão de que as ideias medievais de Chico Xavier eram "universais", "impessoais" e "atemporais", sendo acolhidas tolamente até por esquerdistas, ateus e pessoas com algum senso de modernidade.

E isso é terrível, porque um sujeito cuja trajetória foi marcada por charlatanismo (as "psicografias" fake, ou psicografake, como dizem muitos críticos da deturpação do Espiritismo) e posturas reacionárias, acaba sendo tratado como se fosse "dono da verdade", a ponto de muitos investirem na ilusão de acreditar que "o que Chico Xavier disse ou mostrou é verdade".

Chico Xavier demonstrava odiar a vida moderna, seu desejo era que o Brasil ou, se possível, o mundo e até o universo, fossem um quintal ou um distrito da Pedro Leopoldo de feições rurais de 1910-1932. Daí que ele sempre tratava como "frescura" ou "ilusão" as atividades que escapavam de seu limitado repertório de valores morais e sócio-culturais.

O "ideal de vida" do "médium" era que as pessoas fossem apenas professores, médicos, cozinheiros, funcionários públicos e outras funções referentes a profissões existentes em zonas rurais, suburbanas ou em áreas urbanas mais interioranas, e, de preferência, em padrões anteriores a, no máximo, 1950. Isso é tão certo que as pessoas que seguem o "espiritismo" brasileiro e escapam desses limites valorativos são as que mais sofrem azar na vida ou são alvos de tragédias precoces, como se estivessem sido alvos de alguma maldição.

A fachada "futurista" de Nosso Lar - muitas vezes feita por sugestão do antigo discípulo de Chico Xavier, o então adolescente Waldo Vieira, que era fã de ficção científica - era apenas uma ilusão para forçar as pessoas a aceitarem sofrer as piores desgraças e tragédias, a pretexto de um suposto prêmio em viver em um condomínio de luxo com grande hospital, cinema, restaurante, teatro ao ar livre, ônibus BRT (aeróbus), bosque e até um Bilhete Único (Bônus-Hora), elementos tidos oficialmente como partes de uma "cidade ou colônia espiritual".

É muito estranho haver uma suposta "cidade espiritual" tão imponente e "moderna" quando se sabe que, até hoje, o além-túmulo ainda é um grande mistério, até hoje não resolvido pela ciência. A própria Codificação já alertava que o mundo espiritual era desconhecido às nossas percepções humanas, sendo impossível conceber o além-túmulo à imagem e semelhança da vida terrena.

Isso é terrível, porque o moralismo punitivista de Chico Xavier, com base no seu solipsismo rural e medieval, condena que intervenhamos na matéria bruta da vida terrena, tornando a vida carnal, estimada em cerca de 80 anos hoje, mais agradável.

Para o moralismo retrógrado do "espiritismo de Chico Xavier", o ideal é desperdiçar encarnações inteiras seja com tragédias precoces ou com sofrimento excessivo, enquanto não se resigna com os retrocessos sociais que "devolvem" a modernidade humana a padrões rurais e medievais.

A defesa de que é possível jogar fora uma ou duas encarnações com tragédias ou desgraças mostra o caráter desumano e extremamente cruel do "espiritismo" brasileiro e a Teologia do Sofrimento rediviva em Chico Xavier. Supor que se pode perder encarnações inteiras com infortúnios sob o pretexto de recomeçar tudo em encarnação posterior é uma fantasia que desconhece as transformações da humanidade, que fazem com que uma encarnação desperdiçada em desgraças ou tragédias prematuras se torne perdida, dificilmente podendo ser reconstituída ou recuperada em outra encarnação.

E aí vemos o quanto o Brasil, tomado da fascinação obsessiva por Chico Xavier, um instrumento usado pela ditadura militar (com o apoio entusiasmado e fiel do "médium") para anestesiar os brasileiros, através do mito de "fada-madrinha para gente grande", se submete fácil a retrocessos, se apega a um culturalismo cafona de tal forma que se apega, também, a arrivistas, criminosos e mistificadores, enquanto finge, até para si mesmo, que o futuro se condiciona por tais retrocessos. 

Daí a posição vergonhosa do Brasil na comunidade das nações, diante de seu apego doentio ao supérfluo, ao obsoleto e até ao que é nocivo, em nome de desculpas tão esfarrapadas como a de que 'no além-túmulo, tudo será melhor".