As "cavernas" digitais que dão tempo e espaço para Jair Bolsonaro agir

MUITA GENTE PENSA QUE CHICO XAVIER E JAIR BOLSONARO SÃO OPOSTOS, MAS ELES SÃO DOIS LADOS DE UMA MESMA MOEDA ARRIVISTA.

As redes sociais vivem num mundo de cor e fantasia. Ambientes digitais como os do Instagram, WhatsApp e Tik Tok criaram um mundo paralelo, não só para os brasileiros propriamente provincianos ou reacionários, mas mesmo muita gente considerada "progressista" e "de esquerda", paradigmas considerados mais avançados e, supostamente, mais realistas.

Desde que o Orkut, há 15 anos, teve a façanha de ser um portal de redes sociais cuja maioria de usuários era do Brasil, as redes sociais se tornaram as "cavernas" modernas, com base naquela parábola do filósofo Platão (428 a.C - 347 a.C). 

Nessa parábola, conhecida como "a caverna de Platão", pessoas que ficavam isoladas dentro de uma caverna se julgavam sabedoras do mundo em sua volta. Até que uma pessoa decide sair da caverna e viu um mundo completamente diferente de suas impressões iniciais. Quando essa pessoa voltou para a caverna para anunciar uma realidade diferente vista lá fora, ele foi hostilizado pelos que permaneciam dentro da caverna.

As redes sociais se tornaram um reduto em que a ignorância triunfante e sua ilusória superioridade - estimulada até mesmo pelo discurso religioso, que "poeticamente" prega que "os verdadeiros (sic) sábios são os ignorantes" - , que é a "síndrome de Dunning-Kruger", se tornam dominantes. E a sociedade fica refém desses ambientes em que as narrativas ficam nas mãos de gente com baixo nível de discernimento das coisas.

O monopólio da emotividade como uma pretensa ferramenta de compreensão da realidade, na qual se luta para defender concepções e abordagens que parecem agradáveis às pessoas, é assustador. O chamado "terraplanismo" não é um privilégio de bolsonaristas, como passa a ser comum nas esquerdas que acham que o jogo está ganho para as causas progressistas, apenas às custas de alegrias eventuais.

As esquerdas foram vítimas do mais perverso processo de domesticação trazido por intelectuais que fingiram serem solidários a Lula e a tudo que for causa progressista. Tendo cursado faculdades de graduação e pós-graduação durante o governo Fernando Henrique Cardoso, cujo prestígio intelectual, quando presidiu o Brasil, exercia influência nas universidades federais, esses intelectuais se formaram pelos ideais neoliberais da centro-direita, mas, quando Lula foi eleito presidente do Brasil, passaram, tendenciosamente, para o outro lado, visando vantagens estratégicas.

E é aí que se veio o culturalismo conservador, no qual "romper o preconceito" é visto, erroneamente, como aceitar formas de supostas expressões culturais que, na verdade, abordam o povo pobre como uma multidão infantilizada, ingênua, medíocre e ignorante, mas de uma forma gourmetizada, ou seja, criando uma mentira de que essa "cultura" é "superior" e "fruto da qualidade inerente do povo pobre", contraditoriamente elogiado pelos seus defeitos e carências.

Em outras palavras, o povo pobre é "glorificado" pelas suas debilidades e "combater o preconceito" é adotar uma postura complacente para esse culturalismo confuso, ao mesmo tempo colonizado pelo imaginário pop estrangeiro trazido pela grande mídia e prisioneiro de um provincianismo bairrista, que mal consegue compreender a região em que se vive.

É esse culturalismo que ilude as esquerdas, que acabam sendo vítimas desse imaginário definido como "brega" ou "popular demais", que faz com que mesmo as classes médias com algum nível razoável de consciência social vejam o povo pobre de maneira paternalista, se iludindo com a imagem caricatural, porém agradável, dos pobres vestindo roupas coloridas e expressando sorrisos abobalhados.

E é dentro desse culturalismo que valores da centro-direita são inseridos no imaginário esquerdista como se fossem próprios do ideário marxista, ainda que 99,99% das esquerdas não tenha lido uma vírgula do que o economista alemão Karl Marx havia escrito na sua obra O Capital.

Nesse culturalismo, as "periferias" - um termo usado na obra de Fernando Henrique Cardoso - seriam redutos de uma "pobreza feliz", uma retórica que enganou as forças progressistas porque, com toda a apologia da miséria humana, essa narrativa criou a ilusão de que ser pobre é "uma coisa bonita", uma "autoafirmação positiva" que faz dos ambientes suburbanos e rurais um "reduto de felicidade, prosperidade e autossuficiência".

Tudo é lindo: homens "afogando suas mágoas" pelo alcoolismo. Camelôs correndo risco vendendo produtos piratas ou contrabandeados. Prostitutas vendendo seus corpos para homens violentos. Meninas se expondo à exploração sexual em "bailes funk" e outros shows popularescos, enquanto intelectuais "sem preconceito" definem isso como "saudável iniciação sexual das jovens da periferia".

Casas construídas de maneira precária, não raro em lugares de risco, onde podem haver deslizamentos de terras que causariam consequências fatais, são consideradas "arquitetura pós-moderna intuitivamente feita" pelo povo das periferias. Ruas sem asfaltos, que se alagam completamente, casas velhas situadas em áreas suburbanas, completam o cenário em que favelas são "institucionalizadas", virando "nações" e "paisagens" que servem para o recreio turístico de classes médias que tratam esses ambientes como o que começa-se a entender como "safáris humanos".

TEOLOGIA DO SOFRIMENTO NÃO É TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

As esquerdas, que deveriam ser o contraponto para as abordagens antiquadas do imaginário direitista - cujas formas radicais se articulam em torno do bolsonarismo - , acabam reforçando esse imaginário, e da pior forma que se imagina.

Também perdidas numa incompreensão política que subestima a força de Jair Bolsonaro, cada vez mais ganhando tempo com sua logística golpista, as esquerdas estão tão alucinadas que, contraditoriamente, se perdem tanto na exaltação do hedonismo quanto na da religiosidade, mesmo quando valores como o consumo de drogas como a maconha se atropelam entre uma perspectiva e outra.

Perdidas em cultuar ícones da religiosidade de direita - como Madre Teresa de Calcutá e Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier - , com base em supostas práticas de caridade, as esquerdas se tornam confusas com o processo de ajudar o próximo, sem discernir práticas paliativas daquelas que realmente mudam a vida das pessoas, assim como também são incapazes de discernir a "caridade" que promove pessoalmente o suposto benfeitor das ações de altruísmo autêntico.

Confundindo práticas como Assistência Social (altruísmo transformador) e Assistencialismo (caridade de efeitos meramente paliativos), as esquerdas também não enxergam a diferença entre "aliviar a dor do sofrimento" e "transformar vidas". Uma suposta ação social que apenas reduz os efeitos drásticos da miséria humana não pode ser confundida com ações que tiram pessoas da pobreza, mesmo a relativa. E vale lembrar muito bem que o verdadeiro altruísmo ameaça os privilégios abusivos das elites, coisa que a "caridade religiosa", mesmo a "espírita", evita fazer.

Ver as esquerdas mencionando Madre Teresa de Calcutá como "símbolo de bondade" e exaltando a figura pessoal de Chico Xavier é constrangedor, pelas duas pessoas simbolizarem o que há de mais conservador no imaginário religioso, bem mais conservador do que o mais conservador das seitas neopentecostais.

O teor de conservadorismo religioso não se mede simplesmente pelo ato de proibir isso ou aquilo em alguma prática mais laica, que é o que a opinião pública dominante considera nos neopentecostais. Apesar da suposta retórica "não-raivosa" de Madre Teresa e Chico Xavier, associados a paradigmas religiosos supostamente mais flexíveis, ambos simbolizam, na verdade, o que há de mais medieval e obscurantista de toda a trajetória da Igreja Católica: a Teologia do Sofrimento.

Espécie de "holocausto do bem", a Teologia do Sofrimento prega que os oprimidos suportarem as piores desgraças em silêncio, sem reclamar da vida e conformados com elas ou, no desejo de as superarem, terem que fazer sacrifícios acima de seus próprios limites para conseguirem essa superação.

A Teologia do Sofrimento, pejorativamente conhecida como "O Evangelho Segundo Pôncio Pilatos" - com a ressalva de que o julgamento de Jesus Cristo NUNCA existiu, mas a crueldade de Pilatos era um fato - , foi a corrente mais radical do Catolicismo da Idade Média e que foi resgatada a partir do século XIX por Santa Teresa de Lisieux (1873-1897).

As esquerdas confundem a Teologia do Sofrimento com a Teologia da Libertação (corrente lançada no Concílio II do Vaticano, em 1961), por causa do discurso não-raivoso. A retórica bondosa da Teologia do Sofrimento dá uma falsa impressão de que "o futuro será melhor", as "esperanças do futuro" são usadas como desculpa para que se suportem as desgraças durante anos na vida.

E as esquerdas entram em contradição, porque os paradigmas da Teologia do Sofrimento reprovam toda prática das forças progressistas, porque o que mais estas fazem é reclamar dos abusos das classes privilegiadas e lutar contra as injustiças que a corrente religiosa acha "necessárias" para a "depuração da alma e da consciência humanas". 


As esquerdas chegam mesmo a se iludir com "máximas" como "o silêncio é a voz dos sábios", um discurso dócil mas que expressa apologia à censura, porque segundo essa narrativa, "sábio bom é aquele que, calado, não ensina". Com isso, as esquerdas acabam dando razão para o moralismo religioso de direita, ao endossar seus valores, iludidas com uma simbologia supostamente generosa e pacifista.

CHICO XAVIER, O "JAIR BOLSONARO" DO CRISTIANISMO

Esquecemos as diferenças aparentes que separam Chico Xavier e Jair Bolsonaro, sustentadas pela suposta simbologia de que um era "o amor" e o outro, "o ódio". Observando as formas como um e outro se ascenderam na vida, as semelhanças entre os dois são muito mais intensas e indissociáveis do que mesmo o mais relativista chiquista consegue admitir em suas concessões "realistas".

As ascensões de Chico Xavier e Jair Bolsonaro são surpreendentemente idênticas, parecendo obedecerem a um mesmo roteiro. Um causou escândalos por supostas psicografias - inclsive o estranhíssimo Parnaso do Além-Túmulo - , irritou a comunidade literária e, julgado pela Justiça, foi beneficiado pela impunidade. Outro causou escândalos com plano de atentado terrorista, irritando os meios militares e, julgado pela Justiça, também foi beneficiado pela impunidade.

A partir daí, o "médium" e o "capitão" se ascenderam de maneira vertiginosa, criando legiões de seguidores e de fiéis, e aproveitando as circunstâncias para passar em cima de qualquer situação que lhes desfavorecesse. É a sina do chamado "arrivista", a pessoa sem escrúpulos que aproveita de qualquer meio para levar vantagem na vida.

Muitas pessoas renegam essa semelhança, e não são raros os "textões" nas redes sociais de pessoas "entristecidas" com as comparações de Chico Xavier com Jair Bolsonaro, sob a alegação de que o suposto médium era "uma pessoa tão boa" e "incapaz de ter afinidade com criatura tão abominável". Nas esquerdas, há quem pensa que o "médium" era "alma-gêmea" de Lula, sustentando sua tese com alegações muito agradáveis, porém superficiais e desprovidas de qualquer fundamento lógico.

Mas episódios ocultos da trajetória de Chico Xavier, como um terrível juízo de valor contra pessoas humildes vítimas de um incêndio criminoso num circo, em Niterói, no final de 1961, e as ofensas aos amigos de Jair Presente desconfiados com as supostas psicografias do jovem morto, não bastasse o moralismo punitivista da obra doutrinária e da defesa radical da ditadura militar, expressa de forma escancarada no Pinga-Fogo da TV Tupi, em 1971, confirmam esse direitismo que "isentos" e esquerdistas renegam com equivocada veemência.

E como o "espiritismo" brasileiro lida com energias vibratórias, o que faz com que a religião brasileira, por conta de suas práticas desonestas, atraírem maus agouros, por que as vibrações não são desfavoráveis a Bolsonaro, se ele é considerado oficialmente "antagônico" a Chico Xavier?

Além disso, o obscurantismo fantasioso das redes sociais, que se tornaram a "trincheira" dos seguidores de Chico Xavier, vive da mais intensa confusão digna das "cavernas platônicas", das quais qualquer choque de realidade é rebatido com reações ríspidas, ofensivas e até mesmo moralmente depreciativas.

Nesse obscurantismo onde coexistem o bolsonarismo triunfante, com seus terraplanismos diversos, a complacência dos "isentos" e a ingenuidade das esquerdas, Jair Bolsonaro é o único a ver as energias e os ventos soarem a seu favor, diante da ignorância coletiva em diversos aspectos, não só a dos seus fanáticos seguidores.

Enquanto as esquerdas se acham triunfantes por conta de especulativas pesquisas eleitorais que supõem o favoritivismo de Lula, esnobando tudo e todos que não expressarem o imaginário petista, o presidente Bolsonaro ganha tempo com diversas estratégias, conversando com deputada nazista e com membro do Departamento de Estado dos EUA, articulando apoio aqui e ali e ameaçando barrar as eleições de 2022 se não for adotada a proposta do "voto impresso", uma armação que remete a uma adaptação tecnológica do velho "voto de cabresto".

As esquerdas acham que o reacionário Chico Xavier vai proteger e iluminar Lula e, como quem orasse para uma raposa proteger o galinheiro, rezam para o "médium". Só que as energias podem dar errado e, no Brasil fragilizado e culturalmente deplorável, os riscos de o país mergulhar numa tragédia fascista são grandes e poderão superar até mesmo a tragédia traumatizante do holocausto alemão. A realidade concreta não é o mundo encantado e colorido das redes sociais.