Direitismo do "movimento espírita" não é acidente de percurso. Está na obra de Chico Xavier

 

A fase recente do "movimento espírita" sugere que a maioria de seus doutrinadores e seguidores aderiu a Jair Bolsonaro, em quantidade considerada impressionante num contexto em que os neopentecostais já começam a pensar em "desembarcar" do bolsonarismo.

No entanto, os "espíritas" em geral imaginam que essa fase bolsonarista é um "acidente de percurso" e que "nunca é da natureza do Espiritismo ser reacionário e conservador". Essa narrativa se baseia numa confusão de ideias, nas quais se utiliza o Espiritismo original para passar pano na sua própria deturpação, e num malabarismo discursivo marcado pelo pensamento desejoso (wishful thinking), creditar o óbvio e o evidente como se fosse uma pretensa metáfora.

Não existe acidente de percurso. O direitismo "espírita" no Brasil não é um fato casual nem uma posição repentinamente adotada pelas circunstâncias. Ela tem raiz e está na obra que Francisco Cândido Xavier publicou de 1932 até seus últimos anos, e em todos os seus 400 e tantos livros seu conservadorismo religioso, além de extremo, era tão óbvio que era de saltar aos olhos.

A imagem oficial de Chico Xavier, comparável a de uma "fada-madrinha" para o mundo objetivo das pessoas adultas e idosas, cria uma ilusão de um sujeito "futurista", "moderno" e "progressista", através de alegações que, em níveis emotivos, agradam a todos e garantem a tranquilidade de um consenso fabricado, que tra alegria e conforto, mas não se sustentam pela lógica nem pela coerência.

Chico Xavier foi uma das pessoas mais conservadoras de toda a História do Brasil. Seu prestígio, a exemplo de outra ultraconservadora, Madre Teresa de Calcutá, engana até mesmo esquerdistas e ateus, que erroneamente pensam que essas duas figuras religiosas representam "o que há de mais moderno e progressista no âmbito da religiosidade e da solidariedade".

Madre Teresa, capaz de adotar uma atitude complacente com os insensíveis empresários da Union Carbide, diante da tragédia, provocada pelo descaso da empresa, em Bophal, na Índia, em 1984 - ela pedia para a humanidade "perdoar" os algozes - , era tão reacionária que, adepta da Teologia do Sofrimento (corrente radical do Catolicismo da Idade Média), era capaz de maltratar seus asisstidos. 

Christopher Hitchens, independente de ter sido ateu ou não, revelou aspectos negativos de Madre Teresa num trabalho jornalístico honesto e objetivo, entrevistando quem trabalhou com ela e averiguando aspectos negativos, como a exposição de doentes estremos à contaminação uns pelos outros e o fato de Madre Teresa ser homenageada pelo então presidente dos EUA, Ronald Reagan, cujo governo financiava massacres que dizimaram até católicos progressistas na América Latina, num "banho de sangue" feito para eliminar as forças de esquerda nos países dessa região.

Madre Teresa e Chico Xavier representam modelos de "caridade" que as forças ultraconservadoras defendem, ajudas meramente paliativas combinadas a pregações para que os oprimidos aceitem sua condição inferiorizada, sob a desculpa de "irem mais rápido para o Céu". Os dois defendem a Teologia do Sofrimento, espécie de "Evangelho segundo Pôncio Pilatos", sob o qual a condenação de Jesus Cristo à morte é vista como "algo positivo", supostamente como uma forma de "libertação humana".

No Brasil, setores das forças ideológicas de esquerda ou do ateísmo (neste caso, independente do plano político-ideológico) confundem as coisas, imaginando que a Teologia do Sofrimento é "progressista" e a apologia da desgraça humana seria uma "metáfora" para o que entemdem como "superação". Confundem os dogmas do Catolicismo medieval com as metáforas do pensamento oriental hindu e chinês, chegando mesmo acolher linhas menores e duvidosas do misticismo da China, como a ideia militarista e punitivista do "inimigo de si mesmo", corroborada pelos católicos medievais.

Quem conhece os depoimentos de Madre Teresa e Chico Xavier, além das ideias deste último lançadas em livros, sabe que ambos representam o pensamento religioso ultraconservador. Mas a imagem glorificada dos dois, trazida por uma mídia também marcada pelo conservadorismo, não consegue, infelizmente, despertar um pingo de confiança, e pessoas progressistas acabam acreditando nestas duas figuras que defendem o extremo-oposto das ideias defendidas pelo imaginário progressista.

No Brasil, chegam mesmo a confundir a Teologia do Sofrimento - que pede aos oprimidos se contentarem com sua desgraça pior ou sacrificar além de suas forças para superá-la e ainda os apela para "perdoarem" os opressores em seus abusos diversos, sob a desculpa de que "Deus irá cuidar deles um dia" - com a Teologia da Libertação, até porque quem está com a narrativa progressista em suas mãos é gente bem de vida, que não vê a realidade sob o ponto de vista dos oprimidos e excluídos.

A ideia de "amor ao próximo" da Teologia do Sofrimento, sobretudo nas obras de Chico Xavier e Madre Teresa, é marcada por hipocrisia. Ambos são glorificados por uma ajuda que nunca fizeram, pois a "solidariedade" que tanto se atribui aos dois não passa de doações dadas pelos seguidores, e mesmo assim de forma paliativa e, não raro, farsesca ou oportunista, feita mais para produzir bom-mocismo para as elites, enquanto os pobres são tratados como vira-latas ou como lixo, mesmo.

O silêncio omisso e criminoso de progressistas e imparciais neutros quanto às revelações negativas de Chico Xavier - cujo aspecto sombrio da morte do sobrinho Amauri Xavier faz o caso Flordeliz parecer comédia pastelão, vide as suspeitas de "queima de arquivo" por conta de "ameaças de morte" já noticiadas previamente pela imprensa - impede que investigações maiores sobre o dito "maior médium do Brasil", cujas acusações de charlatanismo (crime previsto pelo Código Penal desde 1940) são postos debaixo do tapete, sejam feitas ou continuadas.

É um silêncio criminoso, porque ninguém se encoraja a desconstruir o mito do "médium fada-madrinha" que há quatro décadas garante o sono tranquilo de gente que varia desde os adeptos mais identificados a Chico Xavier aos simpatizantes que se dizem "distanciados" e "não-sectários".

Preferem a ignorância, a incerteza e a dúvida, quando se trata de algo que eles não podem desmentir sobre o lado negativo do mito do "bondoso médium". Como na espiral do silêncio, preferem uma discordância silenciosa, sem dar respostas apologéticas a Chico Xavier, preferindo ficarem calados porque, aliás, o silêncio é o princípio maior do "médium" que, no fundo, sempre foi um "AI-5 do bem".

Não contestam sequer o uso do "bombardeio de amor" para enganar e dominar o filho de Humberto de Campos e cancelar os processos recorrentes que os herdeiros do editor ainda faziam contra o "médium" e a "Federação Espírita Brasileira". E acham que o apoio de Chico Xavier à ditadura militar foi apenas um ato circunstancial, mesmo não havendo, da parte do "médium", um único remorso ou uma única revisão de valores quanto a esse apoio, e mesmo quando, no fim da vida, o "médium" sinalizava para apoiar Aécio Neves como modelo de governante para o Brasil.

Chegam mesmo a aceitar tolas teses acadêmicas - roupagens "científicas" para verdadeiras bobagens conceituais - de gente como Alexandre Caroli Rocha e Ronaldo Terra, que com suas teses totalmente sem pé nem cabeça, tentam livrar Chico Xavier de responsabilidades reais - de charlatanismo e fraudes literárias contra centenas de pessoas, famosas ou não, e sobretudo Humberto de Campos, e de apoio convicto com a ditadura militar que estava de acordo com o conservadorismo extremo do "médium".

Chico Xavier era católico ortodoxo e sempre foi, até o fim de sua vida. Suas raízes familiares eram profundamente conservadoras. A cidade onde nasceu, Pedro Leopoldo, sempre teve raízes conservadoras, sendo uma das cidades mais rurais da Grande Belo Horizonte, algo como a cidade de Queimados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Nos seus livros, Chico Xavier defendia a precarização do trabalho, a submissão hierárquica aos "superiores", mesmo os mais opressivos, defendia a conformação com a desgraça humana e desaprovava qualquer questionamento, seja qual fosse, e mesmo sob a luz da lógica e do bom senso a contestação não era aconselhada nas obras do "médium".

E devemos considerar que as ideias são do próprio Chico Xavier, não importando os nomes alheios que enfeitam seus livros, em créditos que se revelam duvidosos. Isso porque todas as hipóteses sinalizam que Chico Xavier concorda com as ideias apresentadas pelos livros, e seus partidários acreditam que ele concorda com tudo o que os "autores espirituais" teriam "ditado".

Portanto, não há saída. Se Chico Xavier estivesse vivo, ele mesmo seria um bolsonarista dos mais radicais, a exemplo de tanta gente considerada "bacana", entre atletas olímpicos e alguns ídolos populares, entre comediantes e músicos, que ninguém imaginaria que apoiariam Jair Bolsonaro e se tornaram seus apoiadores mais radicais e inflexíveis. 

As ideias profundamente conservadoras e o apoio radical à ditadura militar e ao AI-5 mostram que o mito do "médium fada-madrinha" é falso e cabe aos brasileiros ter autocrítica e rever a imagem de Chico Xavier, que nem de longe representa a "figura admirável" que goza no imaginário brasileiro e nem sequer a figura do "homem bom que cometeu erros e era imperfeito". Chico Xavier não foi mais do que um "Jair Bolsonaro" do Cristianismo, moldado para os contextos da religiosidade, mas igualmente dotado de profundo reacionarismo obscurantista e nocivo.