Moralismo religioso e a questão do "Eu"


O moralismo religioso "espírita" comete um truque que faz com que os sofredores sejam forçados a se conformar com as desgraças sem controle em suas vidas ou a agir acima de suas próprias capacidades e limites para superar tamanhas adversidades.

Esse truque se vale pela pregação dócil de seus palestrantes e escritores, a partir do moralismo de Francisco Cândido Xavier. Lembremos que Chico Xavier sempre foi adepto da Teologia do Sofrimento, o que há de mais radical das correntes do Catolicismo medieval.

O truque consiste sempre na pregação da "reforma do Eu". Supostamente feita para combater o egoísmo humano e tirar as pessoas de suas zonas de conforto vitais, esse truque ideológico consiste em ir contra a individualidade humana, da maneira mais perversa possível.

Neste sentido, investe-se até mesmo na macabra ideia do "inimigo de si mesmo", assim como outra, igualmente cruel, que é a de "carregar a cruz". É um suposto Cristianismo hipócrita, mais próximo de Pôncio Pilatos do que de Jesus de Nazaré, que a Teologia do Sofrimento serve para pessoas que, no Brasil, não têm a menor percepção do caráter reacionário e punitivista dessa corrente religiosa.

Essa pretensa "reforma do Eu" apela para o indivíduo abrir mão de seus desejos e necessidades, de aceitar uma vida "qualquer nota" e a preferir servir algozes, abusadores e aproveitadores em geral do que realizar boas coisas na vida.

Até para "ajudar o próximo", existe seletividade. Ajuda-se somente quem é algoz, arrivista ou miserável extremo. Ao algoz, sob o pretexto do "perdão". Ao arrivista, sob o pretexto da "solidariedade". E ao miserável extremo, como forma de "anestesiá-lo" na sua pobreza, diminuindo a revolta do pobre sem precisar fazer rompê-lo com sua miséria simbólica.

O "EU" É O "OUTRO", O PREGADOR RELIGIOSO NUNCA É O "EU"

E onde entra o "Eu" nisso? Simples, o pregador religioso fala tanto no "Eu", mas ele é o "Outro". Fora eventuais "carteiradas" - como o pregador se dizer um "endividado" dedicado a "servir" a Deus com palestras e livros, recorrendo a si mesmo como um "Eu" - , o palestrante "espírita" tenta se "anular" como indivíduo, para mascarar aos apelos dados aos seguidores menos afortunados, para que estes aceitem as piores desgraças da vida.

Só que isso consiste numa grande hipocrisia. Alegando desempenhar "o mesmo trabalho peregrino de Jesus de Nazaré", os palestrantes "espíritas", "médiuns" ou não, vivem de considerável conforto, viajando em boas companhias aéreas, hospedando-se em bons hotéis, ganhando dinheiro falando para pessoas ricas e poderosas com as quais posam para fotos publicadas nas colunas sociais. Nada que, em verdade, lembrasse o andarilho Jesus de Nazaré, caminhando longamente sob o calor intenso do Sol.

Tanta hipocrisia! Afinal, os palestrantes "espíritas" pregam a defesa do sofrimento extremo para os outros, não para eles. A individualidade só é condenável para os outros, que não possuem o prestígio social dos pregadores nem os benefícios e usufrutos.

Já os pregadores "espíritas", eles reivindicam sua individualidade, para que estejam entre os autores mais vendidos e sejam os alvos de grande visibilidade e alta reputação. E aí vemos a falsidade desses palestrantes, a condenar a "deturpação espírita" dos outros, quando escritores emergentes surgem para disputar no mercado literário "espírita" ou mesmo de auto-ajuda.

Aí os palestrantes inventam que são contra a "vaticanização do Espiritismo", caprichando nos seus lamentos, com a teatralidade da qual Divaldo Franco é seu maior exemplo, embora Chico Xavier também seja afeito a poses de vitimismo para forçar a comoção pública.

Capricham nos lamentos, bajulam Allan Kardec com falsos apelos de "respeito às bases doutrinárias", mas são todos conversas furadas, servindo apenas para afastar concorrentes iniciantes, cuja acusação de igrejismo e "vaticanização" não é diferente da que pesa, em verdade, sobre os próprios palestrantes que vivem na ilusão de gritar "Kardec, Kardec" achando que irão para o Reino dos Céus.

O "Outro" é sempre um problema para os palestrantes "espíritas", mas o "Outro" se transforma no "Eu", porque os palestrantes sempre se posam de "impessoais" e "imparciais". Tentam eles se passarem por "mensageiros do Alto", e por isso nunca assumem o "Eu" viciado que está dentro deles e que se prende mais em zonas de conforto do que cada pessoa a quem apelam para aceitar o pior sofrimento.

José Lucas, moçambicano radicado em Portugal e autor do blog "Artigos Espíritas", pregava que "ninguém está na Terra para fazer turismo". Dizendo isso, Lucas, todavia, está reprovando o argueiro dos olhos dos outros, uma vez que, esquecendo as traves que cegam seus próprios olhos, um de seus ídolos maiores é Divaldo Franco, que só ficou fazendo turismo pelo planeta, sobretudo pelas luxuosas cidades europeias, para pregar um suposto Espiritismo que foi desfigurado e descaraterizado no Brasil.

A questão do "Eu", portanto, consiste nessa hipocrisia dos pregadores "espíritas" em atribuir ao "Outro" um "Eu" negativo, e aqui não custa lembrar de um ditado popular muito famoso, que diz: Pimenta nos olhos dos outros é refresco". É fácil cobrar sacrifícios para os outros, e não para os próprios pregadores, que abusam da missão que dizem ter mas não cumprem as verdadeiras responsabilidades.