"Espiritismo" brasileiro compra o silêncio de quem pode denunciar


A estranhíssima blindagem com que Chico Xavier goza, tornando-o incapaz de ser investigado e contestado oficialmente, é preocupante. Lembrando de escândalos anteriores que quase provocaram a ruína do suposto "médium", a impunidade que beneficia o religioso, falecido há 21 anos, mostra o quanto pode haver de revelações desagradáveis contra o ídolo da religião "espírita".

Chico Xavier quase foi para a cadeia devido à sua ação revanchista de se vingar de uma resenha irônica escrita em vida por Humberto de Campos para o livro Parnaso de Alem-Túmulo (pioneiro na literatura farsante que hoje produz fake news) para se apropriar do nome do autor maranhense assim que ele tivesse morto.

Outros episódios também mostram o lado criminoso (sim, temos que utilizar esta palavra) de Chico Xavier. Um deles é a fraude de materialização, pela qual ocorreram duas simulações: uma é colocar algodões e gazes para ferimentos na boca de um voluntário, forjando formação de ectoplasma, e outra o uso de modelos cobertos de roupas brancas que, na posição da cabeça, tinham colados retratos impressos de pessoas mortas, supostamente em processo de materialização.

Estas fraudes, cujos atestados Chico Xavier assinava para criar falsa autenticação, ocorreram entre os anos 1950 e 1960 e suspeita-se de que o caso mais grave, que envolveu a farsante Otília Diogo, teria sido um pano do "médium'" para criar sensacionalismo barato que, depois, quando virasse escândalo, ele pudesse sair de fininho para que, desta forma, obtivesse vantagem e visibilidade.

Desse modo, assim que Otília Diogo fosse desmascarada, o que aconteceu em 1970, Chico Xavier pulasse fora, fingisse vitimismo e, assim, passar por cima do episódio e, com maior visibilidade, e promover com o assistencialismo barato que se tornou a "caridade" que blinda tanto o "médium".

Há também o famoso caso de Amauri Xavier, que havia forçado a realizar as fraudes mediúnicas do tio e, resolvendo denunciar a farsa, foi alvo de calúnia, difamação, falsas acusações e, em seguida, de um provável assassinato, que num país mais sério, mesmo com o episódio prescrito há décadas, seria reaberto pela Justiça.

Há outros crimes de Chico Xavier, mas nada chega a ser sequer averiguado. E isso se deve não por um poder divino a proteger um "homem de bem", como consta na narrativa oficial dominante, mas sim por um esquema de subornos e ameaças que pode estar por trás de todo o silêncio em torno de Chico Xavier, que gera piadas no anedotário popular como aquela que usa o concurso público como metáfora: "Você faz concurso público? Não estude os médiuns. Médium não cai em prova".

FEB É MAIS RICA DO QUE SE PENSA

O último episodio em que Chico Xavier teve seu mito posto em xeque foi em 1971, quando a edição de novembro daquele ano da famosa revista Realidade, icônica publicação da Editora Abril, publicou uma reportagem escrita pelo famoso jornalista José Hamilton Ribeiro, mais tarde conhecido no programa Globo Rural, da Rede Globo de Televisão.

Na matéria, Zé Hamilton, como é conhecido, pediu para o "médium" divulgar mensagens atribuídas a dois espíritos: um era da mulher de um dirigente "espírita" de Curitiba que estava gravemente doente, mas ainda não havia falecido, e outra de um homem fictício. Chico Xavier produziu as duas "psicografias". A idosa só faleceria mais tarde, mas isso não garante a autenticidade "mediúnica", do contrário que se supôs na Internet.

Depois desse episódio que foi a última grande tentativa de liquidar com o mito de Chico Xavier como ídolo religioso e pretenso filantropo, o que se seguiu foi uma blindagem que foi facilitada quando a ditadura militar, para enfraquecer a Teologia da Libertação, corrente do Catolicismo considerada progressista e que atuava como oposição contra a repressão ditatorial, resolveu financiar religiões concorrentes.

Foi a partir daí que Chico Xavier, Edir Macedo e Romildo Ribeiro Soares, conhecido pelo apelido de R. R. Sares, foram provavelmente patrocinados pela ditadura militar e promovidos a pretensas novidades religiosas. Cabe investigar melhor este episódio, mas faz muito sentido esse patrocínio, bastando apenas saber quem financiou os três, quanto foi o dinheiro e de que forma ocorreu este apoio.

O que se sabe é que a FEB,"Federação Espírita Brasileira", se enriqueceu de forma exorbitante depois de então, e tornando uma instituição poderosa, chegando a ser mais rica do que a da Igreja Universal do Reino de Deus - majoritariamente sustentada por doações de pessoas pobres, enquanto a FEB recebe, provavelmente, subsídios empresariais - , o que permite que, da década de 1970 para cá, a Lei do Silêncio imperasse em torno do "movimento espírita".

AMAURI XAVIER FOI A "COBAIA"

Considerando plausível a tese de que Amauri Xavier teria sido assassinado - a matéria da revista Manchete, de 09 de agosto de 1958, mostrou um indício disto - , ele pode ter sido usado como "cobaia" do poder ameaçador da instituição "espírita", capaz de realizar "queimas de arquivos" dentro de uma postura vingativa que surpreende a todos por estar oculta na postura aparentemente simpática, cordial e supostamente amorosa apresentada pelos seus diversos representantes.

Três forças sociais poderiam trabalhar para desconstruir o mito de Chico Xavier. Primeiro, os jornalistas investigativos, a desvendarem fatos ocultos e colher depoimentos de testemunhas sobre as denúncias e outros desdobramentos. Segundo, os acadêmicos, que podem analisar aspectos negativos ou duvidosos através de pesquisas e divulgadas por meio de monografias ou artigos. Terceiro, os juízes e outros agentes da Justiça e do Direito, a investigar e buscar condições para condenar o "médium", mesmo que apenas pelo simples crime de charlatanismo, tipificado pelo Codigo Penal desde sua origem em 1940.

Mas a FEB, para manter seu poder abusivo porém sutilmente mascarado pela falsa humildade, a ponto de fazer com que seus dirigentes apelem para a sociedade fazer doações para as "atividades filantrópicas" da instituição "espírita", precisa comprar o silêncio da imprensa, do meio acadêmico e da Justiça. E isso inclui, até mesmo, um lobby que envolve um núcleo "espírita" infiltrado num setor acadêmico da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o Núcleo de Estudos sobre Saúde e Espiritualidade.

A própria estrutura de poder na imprensa e na mídia em geral, nas universidades e na Justiça, norteia esse processo de Lei do Silêncio do "espiritismo" brasileiro. Uma imprensa que segue a linhagem do jornalismo corporativo dos tempos do AI-5 da ditadura militar, por si mesma, guarda consigo a tarefa de blindar a figura de Chico Xavier até além dos limites éticos imagináveis.

Outro ponto a observar e que a expressão do pensamento crítico já não é um item que possa ser apoiado pela grande mídia ou mesmo por veículos mais secundários da mídia, como a chamada "mídia alternativa", como é conhecida a mídia alinhada com a esquerda política. O cinema brasileiro também não tem a fluência temática do cinema dos EUA que, mesmo em filmes comerciais, permite quetionamentos e contestações relevantes.

Aqui o próprio processo de produção de Conhecimento e Saber é prejudicado pela repressão ao senso crítico, obrigando suas atividades a se tornarem processos de complacência e condescendência, sempre para proteger as chamadas "vacas sagradas" do entretenimento, dos esportes, da política e da religiosidade.

Chico Xavier é um dos beneficiados, o que significa uma blindagem muito grande, não porque ele esteja isento de ser investigado ou contestado. Muito pelo contrário. Há aspectos negativos da trajetória do "médium" que, se revelados, seriam estarrecedores, e a Lei do Silêncio imposta pela FEB, de fazer inveja a muitas organizações mafiosas dos EUA e da Itália, só faz piorar as coisas, embora a "paz sem voz" seja sempre usada como um pretexto para que todos aceitem, submissos, os abusos e contradições dos envolidos no "meio espírita".