Por que é gravíssimo saber que a "psicografia" de Chico Xavier sofria revisões?


Com a revelação acidental, oculta na monografia de Ana Lorym Soares, O livro como missão: A publicação de textos psicografados no Brasil dos anos 1940 a 1960, de que Francisco Cândido Xavier não só tinha suas "psicografias" revisadas por editores da "Federação Espírita Brasileira" como ele mesmo se oferecia a contribuir, com muito gosto, na tarefa, nota-se que a historiadora, sem querer, revelou um gravíssimo escândalo nos bastidores do "movimento espírita".

Isso é de extrema gravidade, e devemos prestar muita atenção na força da palavra "gravidade". Quando se fala que é "gravíssimo", não se pode voltar para a cama e dormir tranquilo, desdenhando de tal constatação. A coisa é grave e, se nosso país não fosse tão complacente, teria significado "fim de linha" para o mito de Chico Xavier.

Contra ele, há muitas denúncias, que vão da defesa da ditadura militar ao apoio a fraudes de materialização, passando pela blindagem que procurou dar a João Teixeira de Faria, o "João de Deus" que, quando começou a ser acusado não só de charlatanismo e exercício ilegal da medicina, como também de assédio sexual, recebeu do "médium" um casarão, que virou a Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, Goiás, para tentar abafar a imagem criminosa com ações de "caridade".

Mesmo a "caridade" de Chico Xavier é um dogma do qual não se apresentam provas nem dados consistentes. Fala-se que "ele viveu da caridade" e "ele sempre ajudou o próximo" e só. É, sob um sentido moral invertido, como se falasse da corrupção de Lula, que sempre foi antagônico ao "médium", apesar das esquerdas tentarem "uni-los". 

O próprio mito de Chico Xavier como "símbolo de bondade" foi montado pela ditadura militar para abafar a ascensão do então líder sindical, criando um suposto ativista religioso que serviu de cortina de fumaça para a crise da ditadura militar. O AI-5 havia acabado, mas os reflexos de seu modus operandi continuaram e nunca foi divulgada essa intenção de forjar o mito de Chico Xavier, que "correu solto" até hoje, passando por todo o breve período de redemocratização (1985-2016).

Só que, observando bem a trajetória de Chico Xavier, se despindo de imagens agradáveis como a "fada-madrinha do mundo real" e "um homem simples e imperfeito que demonstrou bondade e amor ao próximo", veremos aspectos arrepiantes que deixam as pessoas assustadas. 

O pior é que esses aspectos são confirmados com fatos, e vemos uma coleção deles, que, surpreendentemente, foram em parte trazidas não por opositores do "médium", principalmente representados pela figura estereotipada do "católico ferrenho" (como se Chico Xavier não fosse tão medieval quanto Gustavo Corção, o que é um equívoco, pois ambos eram católicos ortodoxos nos padrões doutrinários do século XIII). O lado sombrio de Chico Xavier era, pasmem, difundido, mesmo sem querer, por seus próprios apoiadores.

E isso mostra o quanto é grave, embora a reação natural dos brasileiros, mesmo aqueles de esquerda - ainda perdidos em suas frescuras mentais, remanescentes da origem centro-direita de muitos esquerdistas - , é de se refugiar na zona de conforto de suas fantasias, que tratam o "médium" como a "fada-madrinha" dos sonhos de muitos brasileiros.

A realidade dói e é compreensível que haja terraplanistas entre os bolsonaristas, que acreditam tanto na "força milagrosa" da cloroquina - suposto remédio para a cura da Covid-19 que lhes soa como um misto de "produto milagroso" vendido pelos Polishop (bolsonarista) da vida e de "remédios sagrados" anunciados pelas seitas neopentecostais - que ameaçaram de morte pesquisadores sérios que estavam estudando os efeitos da referida substância. Não queriam que eles pusessem em prova o "caráter milagroso" de seu "remédio mágico".

Mas quem pense que pessoas que se dizem, ao mesmo tempo, "espíritas" e "de esquerda" que, salvo honrosas exceções, utilizam refúgios "arrojados" para disfarçar seu reacionarismo oculto, pensam algo diferente. Se cultuam Chico Xavier, é porque se espelham em alguém ultraconservador, é praticamente ser bolsonarista mesmo odiando Jair Bolsonaro.

É por isso que, mesmo entre os chamados "espíritas de esquerda", como Franklin Félix, o discurso fantasioso, dócil e "positivista", que evita "todo tipo de raiva e irritação", não necessariamente é oposto ao terraplanismo hidrófobo de Olavo de Carvalho. Félix acredita num "Espiritismo de conto de fadas", achando que existe um "equilíbrio" de dimensões fabulosas entre o Espiritismo original de Allan Kardec e o igrejismo de Chico Xavier.

Todavia, a realidade não é isso e, mesmo que Ana Lorym Soares - considerando como uma das fontes principais o livro Testemunhos de Chico Xavier de Suely Caldas Schubert, considerado um dos "fogos amigos" do "espiritismo" brasileiro ao revelar as fraudes literárias do "bondoso médium" - evite expressar o senso crítico, o que ela descreveu reflete um escândalo dos mais preocupantes dentro dos bastidores do "movimento espírita", no Brasil.

E não há como aceitar o escândalo e dizer que "o bondoso e puro" Chico Xavier, "tadinho", foi manipulado e enganado pelos "maus dirigentes". A pesquisa, até pelo tom descritivo dos fatos - que, se não são criticados, também não são desmentidos pela historiadora - , mostra que Chico Xavier, contrariando a imagem "purificada" de seus seguidores, não teve o menor escrúpulo de aderir às modificações editoriais dos dirigentes da FEB, que alteram as supostas obras espirituais.

Junta-se isso com o caráter duvidoso das "psicografias", que não é o foco do trabalho de Ana, mas é evidente e se coloca no contexto do escândalo. "Obras espirituais" que carregam nomes como Olavo Bilac, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Auta de Souza e Humberto de Campos nunca estão à altura do que eles nos deixaram quando eram vivos. 

Isso em si já é grave, mas muitos deixam passar porque, num Brasil emburrecido, o conhecimento literário é bastante superficial, as pessoas mal estão começando a ler livros de auto-ajuda, ficções juvenis e diários de youtubers! E isso para não dizer os "livros para colorir", em que muitos "leem" as figuras sem cor sem ter ideia se isso é para pintar ou fazer leitura subliminar. Para quem hoje imagina que a Terra é plana, toda idiotice é possível.

Não sejamos infantis. Devemos prestar atenção a duas brechas que Ana Lorym Soares deixa para que nós, em leitura subliminar, transformem o "natural processo" das revisões editoriais dos livros de Chico Xavier em algo bastante suspeito:

Em primeiro lugar, Ana descreve as manifestações espirituais como "supostas" ou "presumidas". Em várias partes do seu trabalho monográfico, a autora, mesmo sem o interesse de contestar o assunto pesquisado, ela dá uma deixa, como quem se esquece de fechar uma porta, para que a atividade de Chico Xavier se tornasse preocupantemente suspeita.

Isso desqualifica a alegação de "consulta aos amigos espirituais" (suposta referência a Emmanuel e André Luiz, alegados "editores do além"), que era o único sustentáculo para permitir que acreditemos nas revisões editoriais como algo "positivo" e "digno de confiabilidade". 

Afinal, trata-se de uma desculpa "sobrenatural" para se considerar válido o processo dos "editores terrenos", só que isso se compara àquela história das crianças que, jogando bola, atiram na vidraça de uma casa e dizem que "foi o vento que jogou a bola contra a casa". O fato de Ana descrever, várias vezes, a atuação "espiritual" como "suposta" ou "presumida", com os seus derivativos gramaticais, reforça o caráter suspeito das obras de Chico Xavier.

Em segundo lugar, a autora enfatiza que as revisões editoriais eram "muito comuns". Ela diz isso várias vezes. Não bastasse o caso vergonhoso de Parnaso de Além-Túmulo, que sofreu modificações editoriais cinco vezes, com Suely Caldas Schubert revelando ao público, mais de 35 anos depois, que havia uma participação de "editores da FEB" nessas alterações, o fato de que outras obras também receberam essa "intervenção terrena" é estarrecedor.

Isso é grave e contraria, frontalmente, os ensinamentos de Allan Kardec, que pode até ter selecionado o que deve ou não ser publicado das mensagens atribuídas aos espíritos, mas ele nunca se atreveu a fazer uma modificação nas mensagens aceitas. 

Coisas extremamente tolas e sem importância como trocar o verso "Sorrindo... Sorrindo..." por "Sorrindo... Cantando..." são de uma leviandade vexaminosa. Mas para quem "lê" livros para colorir, tanto faz: Chico Xavier "pode ter feito m..., mas ele fez caridade (sic)". Mais uma vez, a "carteirada" chiquista.

E isso só agrava as coisas, assim como as tendenciosas inclusões e exclusões de poemas, versos e poetas ou escritores (no caso de prosas, que também apareciam em Parnaso de Além-Túmulo), porque isso revela, simbolicamente, uma coisa: que o recado dos espíritos não tem valor e o que vale mesmo é o que Chico Xavier e a FEB defendem e acreditam. É como se eles é que tivessem a "verdade" em suas mãos.

Outro ponto suspeito é o fato de que os manuscritos dos livros "mediúnicos" foram destruídos. Como imaginar que isso foi feito mediante a suposição de que são "vestígios originais do recado dos espíritos", o que poderia ser, em tese, motivo de orgulho e de preocupação ampla em manter tais documentos? 

A destruição dos mesmos só reforça ainda mais as suspeitas de que Chico Xavier participou de atividades fraudulentas e, portanto, terrivelmente desonestas. Talvez os manuscritos escondessem anotações que, reveladas, trariam oficialmente a denúncia de que Chico Xavier teria sido um dos pioneiros da literatura fake, precursora das fake news e dos fakes da Internet.

O que está latente no trabalho de Ana Lorym é justamente aquilo que ela não menciona nem sequer sugere isso: é a revelação de um dos maiores escândalos dos bastidores do "movimento espírita", e que podem derrubar a reputação que Chico Xavier goza hoje, postumamente, como um pretenso símbolo de "amor, paz, fraternidade e caridade com o próximo". O mito do "carteiro de Deus" e do "médium dos descamisados" corre um sério risco de ser destruído por tais revelações.

Infelizmente, temos a esquizofrenia como um defeito "socialmente aceito" pelos brasileiros e, se as pessoas não acreditam que a masculinidade tóxica dos feminicidas pode abreviar suas vidas pelo descuido da saúde, o que esperar da consciência exata dos inúmeros escândalos que não conseguem tirar o sono dos cidadãos?

A decadência do governo Jair Bolsonaro, aparentemente, só começou a ter sentido real quando o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, pediu demissão. Antes disso, o governo poderia causar até uma catástrofe brasileira que uma parcela da nossa sociedade continuava andando pelas ruas como quem estivesse nos bosques do Paraíso, sorrindo para as pessoas e, na hora de dormir, curtirem o sono tranquilo dos ditosos.

Com essa complacência bovina, há quem ache que "não" há escândalos nas revisões editoriais dos livros de Chico Xavier. Ou, se há, o "médium" é vítima dos "homens maus" que, dirigindo uma instituição "espírita", foram "dominados pelos obsessores".

É muito terraplanismo em torno de Chico Xavier, sempre favorecendo sua reputação mesmo sob hipóteses que entram em conflito entre si (como a alegação de ter sido o "profeta da data-limite"), que só devemos considerar o seguinte: as mesmas condições psicológicas que geraram Jair Bolsonaro são as que geraram Chico Xavier.