Chico Xavier seria rejeitado, segundo conselho de Allan Kardec


Oficialmente, o "espiritismo" brasileiro se autoproclama estar de acordo com os ensinamentos originais do Espiritismo francês. O "enxugamento" de ideias que ameniza o cientificismo de Allan Kardec e seleciona os aspectos menos espinhosos do igrejismo de Francisco Cândido Xavier mostram o quanto a deturpação é tão organizada e tão agradável que poucos conseguem perceber e admitir que a Codificação foi desfigurada no Brasil.

Mas foi, se os brasileiros tiverem um hábito mais consistente de leitura, não somente lendo livros de auto-ajuda, romances de fantasia juvenil, diários de youtuber e até "livros para colorir", estes risivelmente classificados como "não-ficção", mas lendo obras menos badaladas e, ainda assim, acionando o raciocínio interpretativo e, em certos casos, crítico.

As pessoas ficam em suas zonas de conforto de se manter em convicções equivocadas, que só fizeram sentido num contexto mais abertamente conservador, como foi o Brasil de 40 anos atrás. Querer voltar para trás para recuperar esse conservadorismo doentio está fazendo surtar muita gente, de bolsonaristas enlouquecidos até "espíritas de esquerda" contrariados, todos irritados quando a realidade se mostra de maneira desagradável a suas crenças e visões de mundo.

O ultraconservador que, nos anos 1970, poderia se portar de maneira elegante e polida, hoje é um tresloucado que quer recuperar o sentido irrecuperavelmente perdido das coisas. Se irrita, contrai a mania de argumentar o inargumentável, criando arremedos de monografias em blogs, bancando o "isentão" cheio de malabarismos discursivos - do tipo "não se achar dono da verdade mas querer ficar com a palavra final para tudo" - ou, quando isso não é possível, partir para a ignorância das agressões.

Não pensem que os seguidores de Chico Xavier são diferentes dos de Jair Bolsonaro. Os chiquistas, quando contrariados, não falam coisas dóceis do tipo "Eu entendo a discordância do irmão e, com paciência, creio que Deus irá um dia mudar os seus pontos de vista". O buraco é mais embaixo e já houve gente que manifestou discordância a Chico Xavier e recebeu ameaças de morte (isso mesmo).

"MELHOR CAIR O BRASIL INTEIRO DO QUE CAIR CHICO XAVIER"

Só mesmo um país de desinformados, de verdadeiros terraplanistas, para achar que o Espiritismo no Brasil mantém intatos os ensinamentos originais da Codificação. É muita ingenuidade, que os "espíritas" brasileiros frequentemente passam vergonha ao usar argumentos aqui e ali para defender Chico Xavier, de Franklin Félix a Carlos Vereza, de Geraldo Lemos Neto a Brita Brazil.

O "espírita" tem menos paz de espírito (olha o trocadilho) do que os evangélicos neopentecostais, que podem cometer gafes, agressões e caneladas mil, mas não sofrem tanto por isso ou, quando admitem, sabe que reconhecem ser coisa óbvia demais. Ou seja, que erraram feio porque o erro era por demais evidente, como agredir enfermeiros que protestavam contra o descaso do governo Bolsonaro, no último Primeiro de Maio.

Mas os evangélicos neopentecostais e bolsonaristas são mais assumidos no seu reacionarismo, enquanto os "espíritas" são conservadores mas condenam o conservadorismo dos outros, uns vestem a máscara do "espiritismo de esquerda", mas apoiam o reacionário Chico Xavier, que defendia a servidão no trabalho e a aceitação da desgraça em silêncio e sem queixumes, coisa que não dá para relativizar com o pensamento desejoso e um palavreado persistente, porque são ideias claramente reacionárias.

Com toda essa ignorância que os próprios "espíritas", mesmo os que se dizem "esforçados" - descontamos as exceções, tão poucas que desaparecem na contemplação desta análise - , esquecem que Chico Xavier personifica justamente tudo o que Kardec reprovava severamente em seus ensinamentos. O "médium" brasileiro, aliás, mais parece o "velocino de ouro" moderno, cultuado por brasileiros impacientes com o verdadeiro significado da Boa Nova pelo Cristianismo primitivo.

Um dos aspectos em torno de Chico Xavier é seu desprezo à Lógica e ao Bom Senso. Notaram que ninguém tem coragem de dizer que Chico Xavier era "honesto"? Isso porque sua trajetória se fundamentou em um ato desonesto, a "psicografia" que abertamente mostrava falhas diversas, seja nos estilos atribuídos aos supostos espíritos, sejam aspectos como assinaturas "espirituais" (não raro, com a caligrafia do próprio "médium").

Deixando as paixões religiosas de lado e abandonando a imagem "fada-madrinha" que Chico Xavier goza entre seus seguidores e simpatizantes - agora todo mundo trocando a antiga postura de idolatria explícita para se autoproclamarem "admiradores moderados de um homem simples, imperfeito e endividado" - , vemos que o "médium" seria rejeitado tanto por Jesus Cristo, que o veria como um fariseu moderno, e por Allan Kardec, que o veria como inimigo interno do Espiritismo.

Essa visão é dolorosa, mas bastante realista. E pode ser comprovada pela obra kardeciana, em diversos trechos, como em O Livro dos Médiuns, no capítulo 20, Influência Moral dos Médiuns, no item 230. Os grifos são nossos.

Mas onde a influência moral do médium se faz realmente sentir é quando este substitui pelas suas pessoas aquelas que os Espíritos se esforçam por lhe sugerir. É ainda quando ele tira, da sua própria imaginação, as teorias fantásticas que ele mesmo julga, de boa fé, resultar de uma comunicação intuitiva. Nesse caso, há mil possibilidades contra uma de que isso não passe de reflexo do Espírito pessoal do médium.

Acontece mesmo este fato: a mão do médium se movimenta às vezes quase mecanicamente, impulsionada por um Espírito secundário e zombeteiro.

É essa a pedra de toque das imaginações ardentes. Porque, levados pelo ardor das suas próprias idéias, pelos artifícios dos seus conhecimentos literários, os médiuns desprezam o ditado modesto de um Espírito prudente e, deixando a presa pela sombra, os substituem por uma paráfrase empolada. Contra esse temível escolho se chocam também as personalidades  ambiciosas que, na falta das comunicações que os Espíritos bons lhe recusam, apresentam as suas próprias obras como sendo deles. Eis porque é necessário que os dirigentes de grupos sejam dotados de tato apurado e de rara sagacidade, para discernir as comunicações autênticas e ao mesmo tempo não ferir os que se deixam iludir.

Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos antigos provérbios. Não admitais, pois, o que não for para vós de evidência inegável. Ao aparecer uma nova opinião, por menos que vos pareça duvidosa, passai-a pelo crivo da razão e da lógica. O que a razão e o bom senso reprovam, rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa.

Com efeito, sobre essa teoria podereis edificar todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento construído sobre a areia movediça. Entretanto, se rejeitais hoje certas verdades, porque não estão para vós clara e logicamente demonstradas, logo um fato chocante ou uma demonstração irrefutável virá vos afirmar a sua autenticidade.

Quanta hipocrisia. Os brasileiros até rejeitam dez verdades, mas admitem a mentira chamada Chico Xavier. São prisioneiros de suas paixões religiosas, de forma vergonhosa. Tanto que, envergonhados, substituem a idolatria, antes entusiasmada, numa vexaminosa "admiração a um homem simples e imperfeito", eufemismo para o fanatismo que não têm coragem de assumir.

E, com igual vexame, agora "retiram" Chico Xavier do "céu", o qual acreditavam o "médium" estar definitivamente, "encerrada" a "missão encarnatória". Retirado às pressas do banquete dos puros, Chico Xavier agora foi rebaixado, pelos seus seguidores, a um "mperfeito" e um "endividado", o que mostra que os chiquistas também tem seu momento "vergonha alheia", mantendo, oculto, o endeusamento a quem foi retirado do título de "semi-deus" dado por eles próprios.

Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no capítulo 10, Bem-Aventurados os Misericordiosos, nas Instruções dos Espíritos, item III - É Permitido Repreender os Outros?, Kardec, concordando com as lições do espírito São Luís, adverte, com toda a clareza:

"Conforme as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode ser um dever, pois é melhor que um homem caia, do que muitos serem enganados e se tornarem suas vítimas. Em semelhante caso, é necessário balancear as vantagens e os inconvenientes".

Sem balancear as vantagens e os inconvenientes - num contexto de mediocridade humana, regida pelo "complexo de vira-lata" da maioria dos brasileiros, há uma estranha aceitação do prejuízo humano, que para muitos "dá mais graça (sic) à vida" - , as pessoas se apegam a Chico Xavier de tal forma que, quando contrariadas, elas reagem de modo a beirar a uma perigosa insanidade mental.

Preferem as pessoas, resignadas e até felizes com prejuízos, imperfeições e até tragédias - preferem ver morrer cedo o melhor amigo do que o mais deplorável e impune feminicida - , que o Brasil caia, do que cair o mito de Chico Xavier. Desesperados, agora decidiram trocar o endeusamento explícito ao "médium" pelas qualidades rasteiras de "imperfeito" e "endividado", de maneira bastante constrangedora.

O pior é que o apego é bastante doentio e, como todo vício, envergonhado. A pessoa vai, no piloto automático, publicar memes com frases de Chico Xavier nas redes sociais, sob a desculpa de "começar bem o dia". Esquecem que essas frases não têm a beleza que se atribui às mesmas, sendo apenas um jogo de trocadilhos, mensagens vazias de moralismo retrógrado e arremedos de auto-ajuda que parecem agradáveis aos incautos.

Da mesma forma, se sente seduzido por qualquer vídeo mistificador que cite alguma "façanha extraordinária" do "médium" e, também, de qualquer mentira agradável, como supor que Chico Xavier apoiava abertamente a Ciência, a causa LGBTQ e até o esquerdismo político, coisas que, comprovadamente, tinham a sua oposição, exceto a Ciência, cujo respaldo Chico Xavier até dava, desde que de forma restrita e sem colocar em risco os dogmas da "fé espírita".

O pior é que a confusão mental dos "espíritas" brasileiros continua, persiste e se mantém nesse "terraplanismo" espiritualista, ou melhor, nesse "espiritoplanismo" que se esquece que Chico Xavier representa tudo o que havia sido rejeitado pela Codificação. Daí que o Brasil anda decaindo vertiginosamente, enquanto há a preocupação em blindar um inimigo interno do Espiritismo, mesmo com denúncias vindas até de "fogos amigos" do "bondoso médium".