Vergonha alheia: Acadêmico diz que apoio de Chico Xavier à ditadura reflete "santidade" do "médium"



A tendência dos cursos de pós-graduação em discriminarem o senso crítico aposta numa cosmética textual em que o vazio de ideias é maquiado por um aparato "científico" no qual um mesmo roteiro é feito, com o acadêmico tendo que "encher linguiça" para explicar sua tese, para depois desenvolver a monografia confrontando visões opostas e terminar o trabalho desproblematizando a "problemática" tema do seu trabalho.

Neste caso, o compromisso com o Conhecimento é nulo, a transmissão do Saber, bastante estéril, e, enquanto as bancas acadêmicas insistem em tratar o senso crítico, equivocadamente, como um "sinônimo" de opinião pessoal, os trabalhos acadêmicos produzidos sob este prisma só se destinam ao mofo e às traças das bibliotecas, se não têm a sorte de virarem, essas monografias, um próprio problema a ser estudado fora dos meios acadêmicos.

É o caso da tese Fluxos do espiritismo kardecista no Brasil : dentro e fora do continuum mediúnico, que o acadêmico Ronaldo Terra, em trabalho de Mestrado de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, em Marília, que sucumbiu ao momento tipicamente "vergonha alheia".

O acadêmico, sem esconder seu apreço subjetivista a Francisco Cândido Xavier e tomado de sutil fascinação obsessiva, o que, aliás, torna seu trabalho mais opinativo do que muito senso crítico que põe em xeque a reputação do "médium" através de fatos e análises de problemas, investiu numa tese delirante a respeito do apoio que o beato nascido em Pedro Leopoldo deu à ditadura militar.

Ronaldo Terra, num vergonhoso erro de abordagem, afirmou que o apoio de Chico Xavier à ditadura militar e a resposta recíproca dada pelos militares ao "médium" é um reflexo da "santidade" deste, numa tentativa vã de desmentir a colaboração do religioso com a ditadura militar.

Querendo ser objetivo na aparência, a monografia torna-se muito mais opinativa, subjetivista e desprovida de fundamento lógico do que qualquer trabalho contestatório que talvez não se servisse de tamanha maquiagem textual. Este é o problema de trabalhos "científicos" que procuram ter o aparato de "imparcialidade" e uma linguagem "objetiva", mas isso não está livre de apresentar posturas meramente opinativas e desprovidas da verdadeira objetividade.

Vejamos o que, em princípio, Ronaldo Terra escreveu em sua tese, baseada numa edição do livro As Vidas de Chico Xavier, de Marcel Souto Maior, que cita, em parte não reproduzida no nosso texto, as declarações do programa Pinga Fogo, da TV Tupi, em 1971. Prestemos atenção também ao uso que Chico Xavier fez do nome de Castro Alves para escrever um texto pró-ditadura, coisa que o finado poeta baiano nunca teria feito em hipótese alguma, se vivesse na ocasião da "psicografia":

"A declaração de simpatia pelo governo não termina no discurso. Ao final do programa, Chico contempla a plateia com um poema psicografado e assinado, simplesmente, por Castro Alves. Nele, uma nova homenagem: “Dos sonhos de Tiradentes/ Que se alteiam sempre mais/ Fizeste apóstolos, gênios/ Estadistas, generais” (MAIOR, 2003, p. 198).

O reconhecimento não tardou, convidado pela Escola Superior de Guerra, Chico dá uma palestra aos alunos e, ao final, é homenageado com o hino da instituição cantado pelos cadetes. Enquanto sua atuação rendia comentários e protestos de religiosos e jornalistas, o médium usufruía do prestígio obtido. No dia 22 de setembro de 1972, recebeu na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o título de Cidadão do Estado da Guanabara. Nesta data, estava entre os ilustres presentes, o almirante Silvio Heck (MAIOR, 2003)".

Antes de alertarmos sobre a gravidade da homenagem da Escola Superior de Guerra, incapaz de oferecer um prêmio a quem não colaborasse com a ditadura militar que, em 1971-1972, vivia seu período mais duro, vamos à constrangedora desculpa de Ronaldo Terra para desmentir o óbvio de que Chico Xavier colaborou com a ditadura militar: a "santidade".

"Assim, podemos afirmar que sua conduta amistosa em relação aos militares jamais seria questionada pelos espíritas e que, ao homenagear a ditadura, ele evita qualquer tipo de censura, podendo exercer livremente suas atividades e divulgar os preceitos da doutrina. Da mesma forma, os “comandantes políticos” aproveitaram-se da situação para usufruir do crédito revelado por um homem com perfil de santo, capaz de atrair indivíduos dos mais diversos segmentos religiosos, o que desviava o foco do clero e suas críticas.

Aliás, se considerarmos os estudos de Stoll (2002; 2003; 2004) e Lewgoy (2001), citados no início desse capítulo, compreenderemos que as atitudes complacentes de Chico Xavier com o exército brasileiro eram mais condizentes com o perfil católico de santidade assumido por ele do que propriamente uma estratégia em busca de legitimação ou um ato de colaboração com a ditadura militar, condição que não reverte o relacionamento amigável do médium com os militares".

A declaração, além de significar uma teoria conspiratória, ainda que de ideia "positiva" (a "santidade" de Chico Xavier), mas mesmo assim digna de fake news, mostra sérios problemas. Primeiro, porque Chico Xavier contraria a sua imagem "humanista" ao aceitar ser condecorado por uma instituição com o nome de "guerra" e articuladora da repressão militar. Segundo, porque a Escola Superior de Guerra não perderia tempo premiando quem não colaborava, de uma maneira ou de outra, com o regime ditatorial. Se Chico Xavier foi premiado, é porque colaborou com o regime.

A Escola Superior de Guerra é tão conservadora que, recentemente, reivindicou que os servidores públicos que fizessem críticas ao presidente Jair Bolsonaro fossem demitidos, reforçando assim a visão reacionária que sempre foi a tônica da instituição militar, fundada em 1949. Seu rigor militar não permitia que a instituição homenageasse personalidades sem relação com o regime ditadorial, e se condecorou Chico Xavier, é porque ele prestou serviços estratégicos em favor da ditadura.

A inclusão de fontes textuais para reforçar a tese de "santidade" não oferece fundamentação para seus argumentos nem dá o caráter objetivo da constatação de Ronaldo Terra, porque a tese não se sustenta com bases lógicas e ele mesmo apenas menciona essa ideia de maneira superficial, até porque nada impede que um ídolo religioso apoie e colabore abertamente com regimes autoritários, como se confirmou na Europa medieval e no regime nazista alemão.

Lembremos que a ditadura militar adotou o "espiritismo" brasileiro, em parte, como alternativa de obter respaldo religioso quando a Igreja Católica passava a se destacar por correntes progressistas, como a Teologia da Libertação, atuando em prol dos opositores da ditadura militar.

Enquanto isso, o próprio "movimento espírita", sob o consentimento de Chico Xavier, expurgava membros que teriam inclinação esquerdista, e isso não pode ser subestimado, porque, desde quando surgiu, o "espiritismo" brasileiro, por influência de Jean-Baptiste Roustaing, virou "exílio" para católicos medievais brasileiros, insatisfeitos com as mudanças sofridas pelo Catolicismo em geral.

ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA PREMIA QUEM COLABOROU COM A DITADURA

Alguém, em sã consciência, imaginaria que a Escola Superior de Guerra, instituição que era o laboratório do golpe civil-militar (em parceria com entidades como o "Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais", o IPES), iria perder tempo condecorando alguém por sua "santidade"? Como uma instituição estratégica de sustentação da ditadura militar, a ESG só iria condecorar quem tivesse uma colaboração (sim, colaboração) estratégica para o sucesso do governo ditatorial.

Ao definir que Chico Xavier foi homenageado pela ESG por efeito da "santidade" do "médium", o acadêmico Ronaldo Terra cria um sério problema de abordagem: ele acaba, na verdade, "santificando' os militares da Escola Superior de Guerra, que num dado momento acabam premiando um homem por ser ele "uma boa pessoa".

Ronaldo Terra, então, foge da objetividade realista, e minimiza, em sua abordagem, o caráter político da Escola Superior de Guerra e seu empenho na ditadura militar motivado pela ação emergencial do AI-5, para conter os crescentes protestos contra o regime ditatorial.

Considerando o que Terra escreveu a respeito da ESG, entendemos que, conforme esta tese:

1) A Escola Superior de Guerra teria tido um momento de "coração mole" e resolveu condecorar um "santo homem", comovido pelo seu "trabalho no bem";

2) Isso relativizaria o trabalho da instituição militar, historicamente reconhecida pela sua opressão política e pelo respaldo ao endurecimento do regime militar;

3) Em dado momento, a Escola Superior de Guerra teria agido contra seus princípios e premiado uma personalidade religiosa supostamente associada ao povo oprimido, o que contradiz os propósitos da ditadura militar, que estava a serviço das elites opressoras, tanto militares quanto civis.

Isso faz com que o parecer de Ronaldo Terra criasse um grave problema e entrasse em conflito com os fatos históricos. A ditadura militar, através de provas documentais, é historicamente reconhecida como um período de violenta opressão, que ocorreu em todo o seu período de 21 anos, sendo o período do general-presidente Emílio Garrastazu Médici, entre 1969 e 1974, o mais explícito.

Dizemos isso porque, segundo confirmam documentos e depoimentos históricos, a violência ditatorial ocorreu também no período "democrático" dos generais Castelo Branco (1964-1967) e Costa e Silva (1967-1969) e, da mesma forma, na "abertura política" dos generais Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985), neste caso confirmados através de documentação recentemente divulgada.

Como inserir, num contexto destes, o apreço da Escola Superior de Guerra com um "homem de bem", premiando-o por estar "assistindo os pobrezinhos", se tanto do lado da ESG quanto de Chico Xavier, este creditado a uma suposta santidade e uma suposta missão de caridade? Se considerarmos que Chico Xavier recebeu apoio de militares por sua "santidade", a ESG também teria seu caráter perverso atenuado, porque sua grave reputação histórica seria amenizada, o que não há lógica que sustente tal teoria.

Lembremos, sobre a suposta caridade de Chico Xavier, que atualmente blinda a reputação do "médium", que esta alegação não possui fundamentação de argumentos, apesar de ventilada pelos quatro cantos por seus seguidores e até por simpatizantes "isentos". No entanto, essa "caridade", além de descrita vagamente, sem provas nem embasamento algum, se revela tão superficial quanto a de Luciano Huck, por exemplo, por se fundamentar em padrões duvidosos de mero Assistencialismo.

Não há lógica alguma no argumento de Ronaldo Terra, que, além de manifestar uma visão subjetivista em prol de Chico Xavier, o que já contraria qualquer conceito de objetividade intelectual, alivia a barra da Escola Superior de Guerra, dando à instituição momentos de duvidoso "humanismo".

CONFLITO ATÉ COM "ISENTÕES"

Só que o mais grave, disso tudo, é que Ronaldo Terra, além de brigar com os fatos históricos, porque há mais argumentos lógicos que definem Chico Xavier como um colaborador da ditadura militar - sobretudo se levarmos em conta suas ideias doutrinárias, calcadas na Teologia do Sofrimento, e nas declarações hidrófobas contra a esquerda diante da enorme audiência do Pinga Fogo - , ele também entra em conflito com a atual abordagem do "médium" trazida pelos chamados "isentões".

Os "isentões" negam a "santidade" e a "pureza" de Chico Xavier, e, ainda que de forma tendenciosa, acolhem a tese de Allan Kardec sob a questão dos "médiuns imperfeitos", presente em O Livro dos Médiuns, Capítulo 20, Influência Moral dos Médiuns, questão 226, item 9, referente à dissertação de um espírito (desencarnado e interrogado por Kardec) sobre tal influência:

"9. Qual seria o médium que poderíamos considerar perfeito?

— Perfeito? É pena, mas bem sabes que não há perfeição sobre a Terra. Se não fosse assim, não estarias nela. Digamos antes bom médium, e já é muito, pois são raros. O médium perfeito seria aquele que os maus Espíritos jamais ousassem fazer uma tentativa de enganar. O melhor é o que, simpatizando com os bons Espíritos, tem sido enganado menos vezes".

Sabemos que a trajetória de Chico Xavier é cheia de processos de enganar as pessoas. Não é, portanto, o que é mencionado no livro kardeciano, que é a manipulação do "médium" por espíritos desencarnados enganadores, mas as caraterísticas apontadas se encaixam ao processo de um "médium" que, buscando a idolatria religiosa, enganou as pessoas com literatura fake e que servia para atribuir a "espíritos do além" - a partir de Emmanuel - as opiniões do "médium" consideradas "incômodas", sobretudo quanto ao conservadorismo ideológico.

Evidentemente, os "isentões" não estão certos. Eles também apresentam sérios problemas conceituais na sua defesa a Chico Xavier, tido como "impefeito" e "endividado", supostamente creditado como um "pagador de dívidas" que precisava usar a atividade de "médium" e "filantropo" para reparar as "dívidas morais" do passado.

A tese "isenta" retira de Chico Xavier a imagem de "espírito de luz" antes promovida, e, ainda que ele fosse classificado como "iluminado", ele é visto agora como um sujeito "gente como a gente", que mantém ainda inacabada sua "missão encarnatória", na visão dos seus atuais seguidores e simpatizantes.

Isso nada resolve na admissão de aspectos negativos da carreira de Chico Xavier, como as fraudes literárias, recentemente reveladas, por acidente, por outro trabalho acadêmico. Além disso, a tese de "imperfeição" cria uma estranha idolatria, bem mais envergonhada e vazia, porque, quando o "médium" era visto como um semi-deus, pelo menos havia uma motivação para sua adoração, coisa que a atribuição de "imperfeição" e "endividamento moral" anula completamente.

Em outras palavras, que motivo se tem para adorar um sujeito "imperfeito" e "endividado"? Qual a razão para adoração? Ser um "homem simples e bom"? Ter qualidades razoáveis comparáveis ao de qualquer cidadão medíocre e inócuo?

Diante dessas confusões, o que se conclui é que Chico Xavier, que foi, sim, um colaborador da ditadura militar - se não fosse assim, a ESG não perderia tempo produzindo cerimônias e diplomas, não ofereceria seus aposentos para alguém que não colaborasse com a ditadura - , não é digno de qualquer admiração, pois mesmo os "isentos" ainda mantém muitas ilusões em torno do "médium", mascaradas por uma pretensa moderação e uma suposta neutralidade.

Quanto a Ronaldo Terra, ele foi infeliz em sua atribuição, na medida em que, ao recusar admitir que Chico Xavier colaborou com a ditadura militar, acabou amenizando também o caráter repressor da Escola Superior de Guerra, atribuindo a ela uma faísca de "humanismo" que nunca existiu na instituição nem no "médium" condecorado, dando a ambos uma mitificação que não condiz a uma monografia autêntica.