"Santidade" de Chico Xavier e militares: outra abordagem pró-ditadura?
A tese de Ronaldo Terra sobre a "santidade" de Francisco Cândido Xavier é uma piada, mas rende hipóteses bastante espinhosas. A forma como foi concebida essa tese parece "científica", mas a combinação de duas teses soltas rendeu uma mentira descarada e que choca com a verdade histórica, com a lógica e a realidade dos fatos.
Terra se baseou em duas teses. A do antropólogo Bernardo Lewgoy, que estudou a religiosidade de Chico Xavier, combinando os mitos de "santo" e "caxias" (gíria que quer dizer "pessoa obediente"), e a da historiadora Sandra Jacqueline Stoll, que mencionou a influência católica no "espiritismo à brasileira".
As teses em si, embora desprovidas de senso crítico, têm sua validade explicativa para certos fenômenos, como o fato do "espiritismo" brasileiro ser fortemente católico, desviando-se do caráter científico do Espiritismo original, algo que muitos "catolicizados" enrustidos se recusam a admitir, deturpando o legado kardeciano com igrejismo, mas fingindo fidelidade aos postulados originais.
Lewgoy, por sua vez, teve que admitir que Chico Xavier, mesmo quando associado a conceitos de modernização, era bastante conservador, pois conduzia as ideias e formas de abordagem moral e religiosa sempre nesse sentido.
Terra, então, criou uma tese mirabolante, que sugere que "Chico Xavier apoiou a ditadura, sem que necessariamente a tivesse apoiado". Uma tese sem pé nem cabeça, pela qual "as atitudes complacentes de Chico Xavier com o exército brasileiro eram mais condizentes com o perfil católico de santidade assumido por ele do que propriamente uma estratégia em busca de legitimação ou um ato de colaboração com a ditadura militar".
Isso não faz sentido. Ronaldo Terra choca com fatos históricos. Afinal, o biênio 1971-1972 era o auge da ditadura, época na qual Chico Xavier expressou seu apoio à ditadura militar, seja no programa Pinga Fogo, da TV Tupi (o que já é grave, para quem achava que o "médium" era "progressista"), foi homenageado por cerimônias de parlamentares (com a participação do almirante Sílvio Heck, um dos mentores da tentativa de golpe contra João Goulart, em 1961) e da Escola Superior de Guerra.
Naqueles anos, a ditadura militar estava no auge. O AI-5, defendido por Chico Xavier para "combater o caos" (e isso diante de centenas de testemunhas oculares), estava em vigor. Havia uma radicalização do regime ditatorial, com intensa atividade repressiva. Diante dessa lógica de uma ditadura radical, ninguém, com um pingo de lucidez, acharia que a Escola Superior de Guerra teria homenageado Chico Xavier se este não tivesse colaborado com a ditadura militar.
A tese de Ronaldo Terra, sabemos, acabou entrando em choque com a História porque, com sua abordagem, ele minimiza a ação repressiva da Escola Superior de Guerra, que em dado momento entrou num "surto humanista" que a lógica nunca demonstrou, afinal, se a instituição militar patrocinava eventos que mostravam técnicas de tortura militar, com presos políticos sendo usados como cobaias, por que a ESG teria que dar uma pausa no seu radicalismo repressor?
E Chico Xavier? Que humanismo se espera de alguém que dá igual consideração para oprimidos e opressores? Lembremos do famoso exemplo de Jesus de Nazaré, que nunca compactuou com os tiranos do Império Romano e foi condenado à morte por causa disso, e nem por isso o ativista da Judeia se preocupou mais em salvar sua própria pele exaltando os algozes!
TESE A FAVOR DA DITADURA?
O que sabemos é que o Ronaldo Terra que realizou essa tese se "apagou" depois de sua publicação. Ele não se tornou um intelectual destacado e, nas buscas da Internet, o que se vê são homônimos que possuem um destaque social maior do que ele, mesmo em se tratando de redes sociais.
Não podemos dizer que perfil ideológico é esse Ronaldo Terra que apostou na "santidade" de Chico Xavier ao alegar que "ele apoiou a ditadura, sem necessariamente tê-la apoiado", como é o resumo de sua tese. Será ele algum direitista moderado, ou alguém que se assumiria bolsonarista?
Não sabemos. O que se sabe é que sua monografia é medíocre, que mal consegue ter serventia dentro da "bolha espírita", e, fora a missão como este blog de questionamento de seu conteúdo, altamente duvidoso, se destina a "morrer" esquecida nas estantes das bibliotecas de pós-graduação, talvez só recebendo a "atenção" das traças, das baratas, das aranhas e dos fungos, que é o verdadeiro "público" das teses de pós-graduação que evitam exercer o senso crítico, temendo contestar o "estabelecido".
No entanto, podemos inferir se, quando o autor descreve que Chico Xavier, apesar de ter sido homenageado pela Escola Superior de Guerra (notem o nome, "guerra"), "não" apoiou a ditadura militar, em que pese ter elogiado até o AI-5 (depois os "espíritas" se incomodam quando se compara o "médium" a Jair Bolsonaro), estaria, o próprio mestrando, apoiando a ditadura militar ou, ao menos, minimizando sua gravidade repressiva?
Será que ele estaria enxergando o período ditatorial sob os olhos da Folha de São Paulo, que mencionou uma tal "ditabranda" sob o pretexto desta ter sido "menos grave", aparentemente, do que a ditadura do general Augusto Pinochet, no Chile?
Estaria Ronaldo Terra, na verdade, minimizando o caráter repressivo da ditadura militar, a ponto de criar uma "possibilidade de humanismo" para uma entidade considerada o "cérebro" do regime ditatorial, pois sabemos que a Escola Superior de Guerra planejou o começo, o prolongamento, o endurecimento e o fim do período da ditadura?
Isso mais uma vez coloca Chico Xavier numa situação difícil. Se ele "não" apoiou a ditadura militar, no entanto Bernardo Lewgoy admite que o "médium" era conservador. Se a Escola Superior de Guerra homenageou quem "não" colaborou com a ditadura militar, então a instituição mentora do regime ditatorial "não era tão má assim", apesar de patrocinar palestras em que mostravam técnicas como presos políticos descalços com os pés num balde de água tomarem violentos choques elétricos.
Ou seja, como práticas de tortura naturalmente desumanas, por serem sádicas e mortais, como dar choques elétricos em pés molhados ou em vaginas (no caso das presas políticas), pendurar um preso num "pau-de-arara" e enforcar presos rebeldes (como foi o caso de Vladimir Herzog) não impediriam que a Escola Superior de Guerra "respirasse humanismo" ao condecorar Chico Xavier.
Aceitar essa abordagem dá margem a muitas contradições, o que desqualifica o trabalho de Ronaldo Terra que, evitando exercer o senso crítico, sob a desculpa de abordar com "objetividade" o seu tema, acabou se tornando menos objetivo e mais opinativo do que qualquer trabalho que, supostamente, "falasse mal" de Chico Xavier no caso de expor seus pontos bastante negativos.
Definir que Chico Xavier apoiou a ditadura militar pela "santidade" do "médium" é algo sem um pingo de fundamentação. Além disso, é uma alegação especulativa e opinativa, que tendenciosamente costurou duas teses (a de Bernardo Lewgoy e a de Sandra Stoll) para montar uma tese ridícula, que só tem validade para critérios meramente emocionais das paixões religiosas, mas que nada dizem de concreto sobre a realidade da ditadura e a de Chico Xavier.
Por outro lado, quando se fala que Chico Xavier, realmente, colaborou com a ditadura militar, a tese pode ser bastante desagradável, levando muitos dos chiquistas ao choro, mas se sustenta pela lógica e pela realidade dos fatos. Eventualmente, religião e regimes opressivos podem se aliar, ainda mais quando seus propósitos moralistas e conservadores são comuns, como foi o caso de Chico Xavier, um precursor dos chamados "médiuns de direita", e os militares.