Nem "caridade" de Chico Xavier compensa fraudes por ele feitas
NEM O JOGO DE CENA DO ASSISTENCIALISMO, A "ADMIRÁVEL CARIDADE" DE CHICO XAVIER, PODE RELATIVIZAR GRAVIDADE DAS FRAUDES "PSICOGRÁFICAS".
Embora não tenha a intenção de expressar senso crítico nem em questionar o que está por trás das declarações de membros da "Federação Espírita Brasileira" ou das narrativas oficiais sobre certos fatos, Ana Lorym Soares deixou vazar uma denúncia gravíssima que ela não quis fazer, e que esclareceu as aparentes dúvidas de que Francisco Cândido Xavier teria feito "psicografias" sozinho, só com a "colaboração" de "espíritos do além".
Isso lhe valeu uma "carteirada" que durou anos e rendeu a abstenção de uma parcela de escritores. Vale lembrar que ninguém saiu legitimando a "psicografia" de Chico Xavier. Houve quem achava um pastiche grosseiro, como pensavam Osório Borba, João Dornas Filho e Malba Tahan - e, mais tarde, Léo Gilson Ribeiro, fundador de Caros Amigos - , mas quem não achava isso se absteve, como Monteiro Lobato, Apparicio Torelly (Barão de Itararé) e Raimundo de Magalhães Júnior.
Até mesmo um aparente respaldo à "psicografia" de Chico Xavier, dado pelo escritor Agrippino Grieco - hoje esquecido, mas deu nome a uma praça no bairro do Méier, no Rio de Janeiro, ironicamente na rua que tem o nome do "espírita" (assumidamente roustanguista) Dias da Cruz - , foi condicionado mais pela saudade do amigo Humberto de Campos do que pela "legitimidade psicográfica".
Agrippino, no entanto, não tardou a mudar de posição, esclarecido pelo jornalista investigativo Attila Paes Barreto, e se desiludiu com as "psicografias", ao saber que elas não estavam à altura do que Humberto de Campos representou em vida. Agrippino concluiu que bastava a obra de Humberto deixada entre nós, não tendo valor a suposta "psicografia", de qualidade bastante inferior.
Fora isso, não há quem, no meio literário, legitimasse a "psicografia". De maneira tendenciosa, o "movimento espírita", por um erro proposital de interpretação, tentou alegar que as abstenções "confirmavam" a "psicografia" de Chico Xavier, quando se sabe que "não negar" não significa, necessariamente, "afirmar". A abstenção pode não ser uma negação deliberada, mas também não é uma afirmação.
A monografia de Ana Lorym Soares derrubou o mito da "psicografia solitária" que permitia a falácia de que "se Chico Xavier era um fraudador, ele era sofisticado; se não era, foi o porta-voz dos maiores escritores da língua portuguesa", uma dicotomia que durante anos foi a "carteirada" do "médium" que foi aceita até pelos jornalistas"investigativos" de Superinteressante, entre eles Alexandre de Santi, hoje trabalhando no The Intercept Brasil.
Ana Lorym Soares chega a descrever as etapas do que ela não percebeu serem as fraudes psicográficas de Chico Xavier e equipe, aqui resumidas:
1) PLANEJAMENTO DO CONTEÚDO DAS "PSICOGRAFIAS" - Supostamente sob intuição "espiritual" dos pretensos Emmanuel e André Luiz, Chico Xavier elaborava os assuntos a serem escritos nas "psicografias". O que a autora omite é que o conteúdo era combinado previamente pelo "médium" e dirigentes da FEB antes da suposta consulta dos "amigos espirituais";
2) CONTEÚDO DAS OBRAS "PSICOGRÁFIAS" - Supostos escritos "espirituais" que Chico Xavier escreveria inicialmente, em seus manuscritos, hoje destruídos. Os escritos seriam depois datilografados e enviados para a Editora da FEB;
3) REVISÃO E PREPARAÇÃO PARA A COMERCIALIZAÇÃO - Com as cópias datilografadas das "psicografias", os editores da FEB faziam revisões, com várias intervenções editoriais, e administravam a forma de confecção e comercialização de cada livro;
4) REVISÕES ADICIONAIS - Outras revisões adicionais poderiam ser feitas - esta etapa é facultativa, dependendo das circunstâncias, e Chico Xavier seria chamado para participar, para depois rever o trabalho antes feito e fazer alterações, supostamente sob "consulta dos amigos espirituais".
Vários membros da equipe editorial foram identificados por Ana Lorym Soares: o presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, mais outros dirigentes ligados à Editora da FEB, Luís da Costa Porto Carreiro Neto, Manuel Quintão e Ismael Gomes Braga, considerados também consultores literários habilidosos. Porto Carreiro Neto teria concebido o "recheio" literário do livro Volta, Bocage, e contribuído para "estilizar" o pastiche.
Isso é preocupante. Não há como fingir que as fraudes não existiram. Não há como relativizar o processo e acreditar que é preciso "modificar o recado dado pelos espíritos". Isso é uma leviandade, e desqualificaria o sentido de que as mensagens dos "espíritos benfeitores" tenham algum valor. Ou seja, se considerar a tese de que houve mensagens dos espíritos, elas nada valeriam, tendo que haver o "filtro" dos editores da FEB para ser divulgado ao público.
Essas revisões seriam reprovadas por Allan Kardec. E considerando o caráter duvidoso da atribuição espiritual - tudo teria vindo, inicialmente, na mente de Chico Xavier e o grosso do "recheio literário" (os tais "diferentes estilos") era concebido pelos dirigentes da FEB - , uma dupla leviandade deixa o "bondoso médium", autoproclamado "carteiro de Deus", numa sinuca de bico.
DUPLO CRIME
Afinal, há um duplo crime. Há a falsidade ideológica, como o uso de nomes de pessoas falecidas para obras literárias. E há também a violação de sua memória, pois, ao mesmo tempo em que se creditam os nomes de autores falecidos, se modifica o legado "mediúnico" a eles atribuído, enquanto, por outro lado, se coloque sob responsabilidade deles os pontos de vista reacionários de Chico Xavier, ora para livrá-los de culpa, ora para tornar "universais" as opiniões pessoais do "médium".
É, portanto, um ato criminoso, que se agrava quando o "meio espírita" chega a estimular a "liberdade de fé" em relação às "autorias espirituais", como se tanto fizesse acreditar ou não que nomes como Humberto de Campos, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos e outros são os "autores" das supostas psicografias.
Isso é uma aberração, que vai contra a memória dos mortos. Não bastasse o uso de nomes de ilustres escritores contrariar vergonhosamente os postulados espíritas - Allan Kardec identificava nesse ato, da forma como Chico Xavier usou, a um processo de mistificação feito para enganar e dominar o público - , deixar facultativo a legitimação ou não dos mesmos é um ato contra não só a propriedade intelectual, mas à memória social e mesmo ao respeito aos indivíduos.
Afinal, é como se o espírito de alguém morto nada mais valesse e se transformasse numa "propriedade do médium", atitude rejeitada pela Codificação, e as pessoas entendessem como quiserem, o que significa que o rigor da exigência da patente literária, necessário mediante valores morais e éticos de respeito natural a quem já morreu, simplesmente fosse descartado e desprezado sem o menor pingo de escrúpulos.
Um caricato "Humberto de Campos", cujo texto se nota os estilos pessoais de Chico Xavier e Antônio Wantuil de Freitas, foi um caso aberrante dessa permissividade "mediúnica", da qual muitos não têm a mínima noção do seu grau de gravidade.
Não faz sentido que um escritor do nível que Humberto de Campos teria realmente apoiado o desprezo à sua própria propriedade intelectual, a ponto de, vergonhosamente, seu suposto espírito estar associado a uma grande barbaridade: a omissão de sua própria patente intelectual, usando como desculpa as ações de "caridade" feitas "sob o mais absoluto anonimato", conforme esse constrangedor trecho de sua mensagem de 15 de julho de 1944, em razão do julgamento do processo movido pelos herdeiros do autor maranhense (grifos nossos):
"Eis, porém, que comparecem meus filhos diante da justiça, reclamando uma sentença declaratória. Querem saber, por intermédio do Direito Humano, se eu sou eu mesmo, como se as leis terrestres, respeitabilíssimas embora, pudessem substituir os olhos do coração. Abre-se o mecanismo processual, e o escândalo jornalístico acende a fogueira da opinião pública. Exigem meus filhos a minha patente literária e, para isso, recorrem à petição judicial. Não precisavam, todavia, movimentar o exército dos parágrafos e atormentar o cérebro dos juízes. Que é semelhante reclamação para quem já lhes deu a vida da sua vida? Que é um nome, simples ajuntamento de sílabas, sem maior significação? Ninguém conhece, na Terra, os nomes dos elevados cooperadores de Deus, que sustentam as leis universais; entretanto são elas executadas sem esquecimento de um til".
Quanto descaramento, quanto cinismo de Chico Xavier e Wantuil de Freitas que, armando essa peça para tentar manipular a Justiça em nome da impunidade, desqualificaram os herdeiros de Humberto de Campos a ponto de deixar os custos advocatícios da viúva, Catarina Vergolino de Campos, e, mais tarde, em 1957, com Chico Xavier assediando o filho homônimo do autor maranhense, que trocou o natural ceticismo por uma credulidade bastante idiota em favor do "médium".
Se observarmos tudo isso - o que Chico Xavier fez, ao longo dos anos, com Humberto de Campos e sua família - e interpretando, de maneira crítica e investigativa - lembremos que estamos usando o método de raciocínio que Kardec tanto recomendou - as etapas da elaboração dos livros "psicográficos", conclui-se que o "bondoso médium" é uma figura deplorável, indigna, desonesta e que não merece sequer 1% da adoração que recebe de muitos seguidores, até hoje.
E não é para "rebaixar" Chico Xavier a um "homem humilde e imperfeito", renegando o endeusamento anterior, e nem creditá-lo como "endividado moral", para passar pano em seus erros e os maus efeitos dos mesmos. Também não é para usar a "caridade" como desculpa para livrar Chico Xavier das péssimas consequências, mesmo póstumas, de seus gravíssimos e vergonhosos erros.
A ideia é ver Chico Xavier como um usurpador religioso, pior do que Edir Macedo e Silas Malafaia e tão ou mais reacionário do que eles - os neopentecostais, pelo menos, já foram aliados das esquerdas, coisa que o "espiritismo" brasileiro nunca foi - e duvidar até de sua "caridade", na verdade uma demonstração do mais fajuto Assistencialismo do qual o "médium" não doou um centavo e nem um fio de sua peruca. Outras pessoas faziam "caridade" e o "médium" se promoveu às custas dela, como uma cigarra diante do trabalho das formigas.
Temos que considerar o lado sombrio da trajetória de Chico Xavier e questioná-lo profundamente, em vez de se arriscar ao constrangimento do pensamento desejoso, que sempre coloca a fantasia, por ela ser agradável, acima dos fatos. Insistindo com a imagem agradável de Chico Xavier, mesmo com as "concessões" de afirmá-lo como "imperfeito" ou "endividado moral", insiste-se, na verdade, da briga com os fatos, vinda justamente daqueles que dizem rejeitar a violência e a briga.
Chico Xavier não será reabilitado. Ele não ressurgirá como uma fênix depois de uma chuva de pedras. Ele não está acima de Jesus, nem acima da verdade, nem acima da lógica nem do bom senso. Se ele é admirado de alguma forma, a verdade é que seus seguidores estão ofendendo Allan Kardec, que, ao alertar sobre os inimigos internos do Espiritismo, mencionou caraterísticas que se encaixam perfeitamente no perfil do "bondoso médium", na verdade um deturpador da pior espécie.