Tese da "santidade" de Chico Xavier cria uma "sinuca de bico" contra o "médium"


A FASCINAÇÃO OBSESSIVA FAZ COM QUE HAJA IDOLATRIA CEGA A CHICO XAVIER.

A tese de Ronaldo Terra sobre a "santidade" de Francisco Cândido Xavier, pretexto que tentou renegar o seu apoio convicto e radical à ditadura militar, faz com que não só se apele para a blindagem do "médium", mas também cria uma contrapartida que o coloca numa "sinuca de bico".

A monografia de Ronaldo Terra, intitulada Fluxos do espiritismo kardecista no Brasil : dentro e fora do continuum mediúnico, que havia sido lançada como dissertação de Mestrado de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, em Marília, é constrangedora e aponta para motivações extremamente discutíveis:

1) O caráter supostamente oportunista do apoio mútuo entre as Forças Armadas, representadas pela ditadura militar, pelo almirante Sílvio Heck (um dos que tramavam um golpe contra João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros em 1961) e pela Escola Superior de Guerra, e Chico Xavier, que Ronaldo alegou, da parte do "médium", ter sido um "artifício" para evitar a repressão;

2) A ideia de "santidade" que contradiz à natureza humanista, por considerar que Chico Xavier "tratava como iguais" oprimidos e opressores, algo que vai contra os naturais princípios de um verdadeiro ativismo humanista, que sempre está ao lado dos oprimidos, mas nunca dos opressores.

Ronaldo Terra concebeu sua delirante tese juntando duas abordagens aparentemente "soltas": a de Bernardo Lewgoy, antropólogo que estudou a religiosidade de Chico Xavier, e Sandra Jacqueline Stoll, a historiadora que considerou a influência católica no "espiritismo" brasileiro.

A partir daí, Ronaldo lançou uma falácia: que Chico Xavier "apoiou a ditadura, sem necessariamente tê-la apoiado", alegando que "as atitudes complacentes de Chico Xavier com o exército brasileiro eram mais condizentes com o perfil católico de santidade assumido por ele do que propriamente uma estratégia em busca de legitimação ou um ato de colaboração com a ditadura militar, condição que não reverte o relacionamento amigável do médium com os militares".

Ele ainda corroborou com uma abordagem discutível da revista Veja - que, em 1971, ainda desempenhava um bom jornalismo - , que, no seu eventual erro, disse que o apoio de Chico Xavier à ditadura militar era uma "estratégia". Esquecemos que religiosos podem apoiar governos conservadores e até mesmo tiranias. Outra "iluminada", Madre Teresa de Calcutá, foi condecorada pelo mesmo presidente dos EUA, Ronald Reagan, que ordenou banhos de sangue que dizimaram as esquerdas (incluindo padres católicos progressistas) na América Central, nos anos 1980.

À ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA SE ATRIBUIU UMA INTERRUPÇÃO DE SEU CARÁTER REPRESSOR, INSÓLITA E FORA DE LÓGICA

E aí seguimos com o seguinte questionamento. Se Chico Xavier apoiou a ditadura por causa da "santidade" do "médium", apesar da Escola Superior de Guerra, pela lógica de seu rigor repressivo, só homenagear quem realmente colaborasse com a ditadura militar, então, se levarmos em conta a abordagem de Ronaldo, chegaríamos a um sério problema, que vai contra a lógica histórica dos fatos.

Se Chico Xavier recebeu homenagens da ESG, considerada o cérebro do regime militar - são documentos históricos que afirmam isso - e "não colaborou com a ditadura militar", então teríamos que admitir que a instituição militar, apesar do seu rigor repressivo que atuava na perseguição, prisão e morte de opositores da ditadura (em 1971 haviam morrido gente como Carlos Lamarca, Yara Yavelberg e Rubens Paiva), teria tido sua função repressiva minimizada.

Ou seja, se Ronaldo Terra quis fazer alguma coisa, foi a de passar pano na Escola Superior de Guerra, que, na imaginação do acadêmico, passou a ter minutos de "humanismo", contrários à natureza da instituição, quando acolheu Chico Xavier para receber homenagens e prêmios, além de realizar uma palestra no auditório da instituição.

Em outras palavras: Ronaldo contrariou a abordagem histórica que define a Escola Superior de Guerra como um órgão central da repressão, integrado ao Departamento de Estado dos EUA no combate a forças progressistas e patrocinador de aulas de tortura promovidas por militares e autoridades de serviços secretos dos EUA.

Ao considerar que a Escola Superior de Guerra, em tese, não homenageou Chico Xavier pela colaboração com a ditadura militar, o que não é lógico, Ronaldo Terra também minimizou o caráter rigorosamente repressivo da instituição militar, dando a ela momentos de suposto humanismo que não encontram a mínima sustentação na lógica dos fatos.

CHICO XAVIER SEMPRE FOI CONSERVADOR

Outro ponto da "sinuca de bico" da "santidade" de Chico Xavier está numa análise de Bernardo Lewgoy, uma das fontes consultadas por Ronaldo Terra. Comparando o perfil de "santidade religiosa" do "médium" com a de seu perfil "obediente" - definida pelo acadêmico como "caxias" - , Lewgoy teve que admitir, tanto em um como em outro critério, o conservadorismo da personalidade de Chico Xavier.

Embora admitisse aspectos modernizadores das crenças de Chico Xavier, elas eram conduzidas para um nível mais conservador de apreciação religiosa, seja para defender a servidão humana, seja para respaldar a submissão a Deus.

É o caso do "respeito" que Chico Xavier dizia ter e reivindicar dos homossexuais (hoje comunidade LGBTQ". Como um precursor da "cura gay", Chico Xavier pedia esse "respeito", mas defendia que os homossexuais devessem abandonar as suas opções e se "reeducarem" a aceitar as condições biológicas e sexuais determinadas por Deus.

Essa tese contradiz os "espíritas de esquerda", que tentam desenhar, timidamente, Chico Xavier como um "progressista". A atuação de ideólogos como Franklin Félix e Ana Cláudia Laurindo é tímida, porque não há como contradizer o evidente conservadorismo de Chico Xavier, mesmo investindo na falácia conhecida de que a suposta cidade espiritual de Nosso Lar seria uma "comunidade socialista".

O conservadorismo de Chico Xavier é tão escancarado que até mesmo a perspectiva de vida humana defendida por ele, por razões que incluem até mesmo uma avaliação solipsista, segue padrões rurais e antiquados, como se o futuro do Brasil fosse se transformar numa gigantesca versão da Pedro Leopoldo de 1932.

Não há como escapar disso e mesmo os "espíritas de esquerda" tentam reagir pela omissão, incapazes de criar uma teoria que "esquerdizasse" o "médium" mineiro, cujas ideias envolviam conceitos próprios da Teologia do Sofrimento medieval.

Isto quer dizer que não há como escapar da imagem conservadora de Chico Xavier. Embora houvesse o esforço de refutar a responsabilidade de Chico Xavier como apoiador e colaborador da ditadura militar, tese sem lógica embora respaldada por muitos, ela não consegue renegar seu conservadorismo, bastante explícito em suas ideias, sua imagem religiosa e sua formação social.

Portanto, mesmo as abordagens que tentam blindar, neste sentido apresentado no texto, a pessoa de Chico Xavier, deram um xeque-mate a um mito muito alardeado sobre o "médium": o de uma figura progressista, moderna e futurista, que o "médium" nunca foi em momento algum de sua vida.